quarta-feira, 4 de julho de 2012

BOLÍVIA: DO PRESIDENTE AO COPEIRO É UM PAÍS DOMINADO PELO NARCOTRÁFICO

Produção de coca intensifica discórdia entre Bolívia e Estados Unidos
Francesc Relea - El Pais
A coca continua sendo o pomo da discórdia entre os governos da Bolívia e dos EUA. A discrepância sobre os usos tradicionais da mítica planta no país andino não é nova, mas com o presidente Evo Morales o desacordo atinge maior calado. Dentro de três meses terminará a presença na Bolívia da Agência Americana de Cooperação Internacional (Usaid) em programas de cultivos alternativos à coca. Desde sua chegada ao governo, em 2006, Morales expulsou do país o embaixador americano e a DEA (agência antidrogas dos EUA), fechou a base militar de Chimoré e acaba de anunciar sua retirada do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar). Como contraponto, o presidente boliviano assinou na semana passada em La Paz um acordo com seu homólogo iraniano, Mahmud Ahmadinejad, em matéria de luta antidrogas.
"A folha de coca em seu estado natural é um produto com muitas qualidades nutritivas e medicinais. O produtor de coca não é narcotraficante, nem o consumidor de folha de coca é narcodependente", insistiu o primeiro presidente indígena da Bolívia em uma entrevista recente a "El País". A forma mais antiga de consumir folhas de coca é mastigando-as ("akullico"), embora tenha outros usos medicinais, rituais e sociais. Ao consumo tradicional devem-se acrescentar outras fontes de demanda legal, como a indústria de infusões, a exportação para uso farmacêutico e a produção de extrato para a Coca-Cola.
É óbvio que a coca não é cocaína, apesar de ser um ingrediente essencial para a elaboração da droga. Mas os EUA, que são o maior mercado mundial de consumidores de cocaína, rejeitam essa distinção e mantêm uma firme posição contra os cultivos do arbusto milenar. A Usaid investiu US$ 150 milhões desde 2005 no Programa de Desenvolvimento Alternativo Integral em Los Yungas (ao norte de La Paz) e Chapare (Bolívia central), as duas regiões de produção de folha de coca. Os patrocinadores do programa exibem orgulhosos os resultados: os territórios de Palos Blancos e Alto Beni (em Los Yungas) se transformaram em zonas livres de folha de coca, onde hoje se produz cacau, café, banana e palmito, entre outros cultivos destinados essencialmente à exportação.
O Programa de Desenvolvimento Alternativo melhorou as infraestruturas, como a rede escolar e a canalização de água potável. Em 2005, a pobreza beirava os 70%, segundo o índice NBI (Necessidades Básicas Insatisfeitas) da Cepal. Hoje é de 52%. Aparentemente, cumpriu-se com folga o objetivo de redução da pobreza em 60%. Portanto, o programa chegará a seu final em 30 de setembro próximo, por decisão do Congresso dos EUA, explica um antigo funcionário público boliviano.
Até aqui chega a versão oficial, da qual ninguém nos escritórios da Usaid em La Paz nem na embaixada americana quer fazer comentários. A realidade é mais complexa. Segundo estimativas oficiais, para abastecer as necessidades de consumo local e legal de folha de coca são necessários cerca de 12 mil hectares de cultivo. A agência antidrogas da ONU calcula que na Bolívia haja atualmente cerca de 31 mil hectares de plantações ("cocales"), que representam 20% do total da América Latina, atrás de Colômbia e Peru.
O excedente de quase 20 mil hectares ocorre, sobretudo, no Chapare, já que a maior parte da coca consumida legalmente na Bolívia procede de Los Yungas. Nesse cenário não é absurdo deduzir que a coca do Chapare e uma parte de Los Yungas acabe nas mãos do narcotráfico para a produção de cloridrato de cocaína em laboratórios ilegais.
Falta informação precisa e atualizada de quanta coca é necessária para satisfazer a demanda do mercado interno, e de quanta se desvia para a produção de cocaína. As dúvidas desaparecerão quando o governo divulgar o Estudo Integral da Folha de Coca, que implementou em 2008 com financiamento da UE (1 milhão de euros), e que ainda não viu a luz. Segundo o vice-ministro das Relações Exteriores, Hugo Fernández, esse estudo "contribuirá efetivamente para a reelaboração das políticas públicas, voltadas tanto para a revalorização da folha de coca, como para o combate ao narcotráfico". O trabalho inclui uma pesquisa nacional sobre uso e consumo de folha de coca.
A Lei 108, do Regime da Coca e Substâncias Controladas, aprovada em 1988 sob o governo de Víctor Paz Estenssoro, continua sendo a ferramenta principal do combate às drogas. As penas vão de um ano de prisão por cultivo ilegal até 30 anos se a pessoa for considerada culpada de ter vendido drogas a alguém que se intoxicou até a morte. Mais antiga é a Convenção de 1961 da ONU sobre estupefacientes, que inclui a folha de coca na Lista 1 de substâncias proibidas.
O governo de Evo Morales apresentou uma proposta para emendar o artigo 49 no que se refere à mastigação da folha de coca. A proposta foi rejeitada e a Bolívia tomou a decisão sem precedentes de denunciar essa convenção e aderir à mesma com uma reserva.
Em campo, a luta contra os narcos continua sem quartel. No ano passado, a Força Especial de Luta contra o Narcotráfico (Felc) destruiu "mais de 5 mil fábricas de cocaína, 6.500 poços de maceração e 25 laboratórios de cristalização", segundo o vice-ministro da Defesa Social e Substâncias Controladas, Felipe Cáceres.
Em sua época de líder dos camponeses "cocaleros", Evo Morales já irritava o embaixador dos EUA. Um deles, Manuel Rocha, não hesitou em declarar que uma hipotética vitória eleitoral de Morales - "um agitador da coca ilegal" - teria consequências desastrosas para as relações entre Washington e La Paz. Há um século o chefe da diplomacia americana no país andino não teve melhor ideia que propor goma de mascar para todos os bolivianos, em vez da folha de coca.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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