sábado, 6 de maio de 2017

Um retrato da esquerda ni-ni
Demétrio Magnoli - FSP
Jean-Luc Mélenchon, o líder da extrema-esquerda na França, foi um estimado "companheiro de viagem" de Hugo Chávez e, ainda hoje, rotula as críticas ao regime chavista como "propaganda de Washington".
À frente da coalizão França Insubmissa, obteve um quinto dos votos no turno inicial, ficando em quarto lugar, dois pontos percentuais atrás de Marine Le Pen, da ultradireitista Frente Nacional. Diante do segundo turno, gravou um vídeo negando voto a Le Pen mas recusando apoio explícito ao centrista Emmanuel Macron. A maioria de seus eleitores adotou a bandeira ni-ni: nem Le Pen, nem Macron.
No vídeo, o candidato a presidir todos os franceses rejeitou orientar o voto da parcela deles que o segue sob a patética alegação de que não é "um guru" –e chamou-os a participar de uma consulta eletrônica sobre o segundo turno. Face às escolhas apresentadas, que não abrangiam o voto em Le Pen, os 243 mil respondentes dividiram-se entre o voto nulo ou branco (36%), a abstenção (29%) e o voto Macron (35%).
Le Pen ou Macron, tanto faz! – eis a mensagem da vasta maioria do núcleo militante da extrema-esquerda. Ou, na tradução "revolucionária" deles, "nem Pátria, nem Patrão".
De olho nas urnas, a Frente Nacional qualificou a decisão dos militantes como "muito sã". Já os dirigentes da França Insubmissa formularam três justificativas internamente inconsistentes, e contraditórias entre si, para o ni-ni.
1) Macron será eleito de qualquer forma, independente dos votos dos "insubmissos". Tradução: os votos da centro-direita representada por Fillon, que declarou apoio a Macron, são a apólice de seguro da pureza ideológica da extrema-esquerda.
2) As políticas "liberais" de centro-direita e centro-esquerda, inclusive de Macron, é que pavimentam a estrada de Le Pen rumo ao poder. Tradução: os que votam Macron, não os que rejeitam a escolha, são culpados por um eventual triunfo de Le Pen.
3) A ascensão de Le Pen não seria um desastre, pois destruiria o centro político, limpando a arena para o confronto decisivo entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Tradução: a meta imediata dos "insubmissos" é a vitória de Le Pen, mesmo se negam a hipótese desse resultado ou atribuem aos outros a responsabilidade por ele.
A motivação genuína dos "insubmissos" está próxima da terceira justificativa, não das duas primeiras, meros álibis (i)morais para sua colaboração tácita com a extrema-direita. Le Pen e Mélenchon disputam o mesmo estoque de eleitores, antiga base social da esquerda comunista: os "órfãos da globalização", concentrados nos cinturões industriais degradados do norte e do leste da França.
A extrema-direita e a extrema-esquerda compartilham um extenso ideário político. Embora divirjam radicalmente no campo da identidade nacional (os "insubmissos" não são nativistas, xenófobos ou islamofóbicos), estão basicamente de acordo sobre economia e geopolítica. São antiamericanos, anti-União Europeia, pró-Putin. São protecionistas e antiglobalização. São avessos a reformas trabalhistas e previdenciárias.
"Entre Macron e Le Pen, a questão não deve nem mesmo ser posta", alerta a ministra social-democrata da Educação Najat Vallaud-Belkacem, registrando que Macron "enfrenta uma candidata cujo programa é incompatível com a República, a democracia e certas liberdades fundamentais."
O chamado à união contra a ultradireita choca-se com a muralha da indiferença ni-ni. Nas eleições parlamentares de junho, os "insubmissos" enterrarão de vez a tática da Frente Republicana, recusando-se a apoiar, em segundo turno, os candidatos de centro-esquerda ou centro-direita mais cotados a derrotar os pretendentes da Frente Nacional.
Esquerda versus direita? O colaboracionismo dos ni-ni franceses sugere que, agora, a clivagem relevante é outra: aberto versus fechado ou nação versus mundo.

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