Samba sem transparência
Se as contas das escolas estivessem na ponta
do lápis, seria mais fácil reclamar do corte. Mas, como qualquer
sambista Nutella sabe, nem todo o dinheiro é limpo
Bernardo Araújo - O Globo
Nessa luta do rochedo com o mar entre o prefeito Marcelo Crivella e as
escolas do samba do Grupo Especial do Rio — o alcaide anunciou um corte
de R$ 1 milhão na subvenção às agremiações, metade do valor dos últimos
dois anos, e elas responderam suspendendo o desfile —, o marisco
derrotado é só o carnaval, um business mal gerido, sem competência sequer para os bravos desfiles da Intendente Magalhães.
Quanto custa um desfile? Entrevistada pelo GLOBO, a Mocidade
Independente de Padre Miguel diz que seu carnaval de 2017, campeão, ao
lado do da Portela, saiu por R$ 8 milhões, entre a subvenção e outras
fontes, como venda de ingressos, direitos de arena e... recursos
diversos, digamos. Por que será que as escolas não têm uma contabilidade
clara, como deveria ter qualquer empreendimento, mormente os que usam
dinheiro público? Se as contas estivessem na ponta do lápis, seria mais
fácil reclamar do corte. Mas, como qualquer sambista Nutella sabe, nem
todo o dinheiro é limpo, vide as repetidas mortes de pessoas ligadas ao
mundo do samba, notícia quase semanal — nos últimos dias, o assassinado
foi Haylton Carlos Gomes Escafura, filho do contraventor José Caruzzo
Escafura, o Piruinha, de uma dinastia tão íntima do crime como dos
surdos de terceira; meses antes do carnaval, Marcos Falcon, presidente
da Portela, também sucumbiu a tiros; em abril, foi a vez de Myro Garcia,
filho de Maninho, que por sua vez era filho de outro Miro... A lista é
interminável.
Se quem não presta contas já não deveria reclamar de falta de
dinheiro público, muito menos a batida de pezinho e a ameaça de não
desfilar levarão alguém à Apoteose. Primeiro, porque o dinheiro
“perdido” significa, no caso dos carnavais mais baratos (segundo as
próprias escolas), um oitavo do orçamento. É um problema, mas quem não
vive com 7/8 do que vivia antes? “Ah, mas o carnaval movimenta muito
dinheiro...” Justo. E quanto dinheiro a menos será movimentado se o
desfile da campeã Mocidade, por exemplo, for para a rua por R$ 7
milhões, em vez de R$ 8 milhões? Quantos foliões deixarão de comprar
ingressos?
O carnaval merece e precisa de muitos investimentos, na
infraestrutura do Sambódromo e arredores, na Cidade do Samba (de onde
saíram as alegorias que causaram dois acidentes graves e uma morte na
última folia), nos precaríssimos barracões das escolas dos grupos
inferiores. Os desfiles em si podem sempre melhorar, mas não será
necessariamente por uma maior injeção de dinheiro. Alguém faz questão de
mais luxo, de carros alegóricos ainda mais altos? Ou a criatividade de
profissionais como Leandro Vieira, carnavalesco que revolucionou a
Mangueira nos dois últimos anos, dos compositores de sambas como o da
própria Verde e Rosa, da Beija-Flor e outros (que, se sabe, não ganham
nenhuma fortuna) não é um fator que pode contribuir mais para a festa?
Não que a decisão do prefeito contemple nada disso, é claro. A
demagogia de supostamente usar o dinheiro em creches (R$ 13 milhões são
um troco no orçamento bilionário do município do Rio) é uma desculpa
para dar uma cutucada na festa profana — que, ingênua, apoiou
maciçamente Crivella nas eleições de 2016. Que o corte seja o primeiro
passo para um carnaval mais profissional, transparente e independente do
dinheiro público, e que o velho e falso clichê que diz que “no Brasil,
só o carnaval é organizado” um dia se torne verdade.
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