terça-feira, 20 de junho de 2017

Samba sem transparência
Se as contas das escolas estivessem na ponta do lápis, seria mais fácil reclamar do corte. Mas, como qualquer sambista Nutella sabe, nem todo o dinheiro é limpo
Bernardo Araújo - O Globo
Nessa luta do rochedo com o mar entre o prefeito Marcelo Crivella e as escolas do samba do Grupo Especial do Rio — o alcaide anunciou um corte de R$ 1 milhão na subvenção às agremiações, metade do valor dos últimos dois anos, e elas responderam suspendendo o desfile —, o marisco derrotado é só o carnaval, um business mal gerido, sem competência sequer para os bravos desfiles da Intendente Magalhães.
Quanto custa um desfile? Entrevistada pelo GLOBO, a Mocidade Independente de Padre Miguel diz que seu carnaval de 2017, campeão, ao lado do da Portela, saiu por R$ 8 milhões, entre a subvenção e outras fontes, como venda de ingressos, direitos de arena e... recursos diversos, digamos. Por que será que as escolas não têm uma contabilidade clara, como deveria ter qualquer empreendimento, mormente os que usam dinheiro público? Se as contas estivessem na ponta do lápis, seria mais fácil reclamar do corte. Mas, como qualquer sambista Nutella sabe, nem todo o dinheiro é limpo, vide as repetidas mortes de pessoas ligadas ao mundo do samba, notícia quase semanal — nos últimos dias, o assassinado foi Haylton Carlos Gomes Escafura, filho do contraventor José Caruzzo Escafura, o Piruinha, de uma dinastia tão íntima do crime como dos surdos de terceira; meses antes do carnaval, Marcos Falcon, presidente da Portela, também sucumbiu a tiros; em abril, foi a vez de Myro Garcia, filho de Maninho, que por sua vez era filho de outro Miro... A lista é interminável.
Se quem não presta contas já não deveria reclamar de falta de dinheiro público, muito menos a batida de pezinho e a ameaça de não desfilar levarão alguém à Apoteose. Primeiro, porque o dinheiro “perdido” significa, no caso dos carnavais mais baratos (segundo as próprias escolas), um oitavo do orçamento. É um problema, mas quem não vive com 7/8 do que vivia antes? “Ah, mas o carnaval movimenta muito dinheiro...” Justo. E quanto dinheiro a menos será movimentado se o desfile da campeã Mocidade, por exemplo, for para a rua por R$ 7 milhões, em vez de R$ 8 milhões? Quantos foliões deixarão de comprar ingressos?
O carnaval merece e precisa de muitos investimentos, na infraestrutura do Sambódromo e arredores, na Cidade do Samba (de onde saíram as alegorias que causaram dois acidentes graves e uma morte na última folia), nos precaríssimos barracões das escolas dos grupos inferiores. Os desfiles em si podem sempre melhorar, mas não será necessariamente por uma maior injeção de dinheiro. Alguém faz questão de mais luxo, de carros alegóricos ainda mais altos? Ou a criatividade de profissionais como Leandro Vieira, carnavalesco que revolucionou a Mangueira nos dois últimos anos, dos compositores de sambas como o da própria Verde e Rosa, da Beija-Flor e outros (que, se sabe, não ganham nenhuma fortuna) não é um fator que pode contribuir mais para a festa?
Não que a decisão do prefeito contemple nada disso, é claro. A demagogia de supostamente usar o dinheiro em creches (R$ 13 milhões são um troco no orçamento bilionário do município do Rio) é uma desculpa para dar uma cutucada na festa profana — que, ingênua, apoiou maciçamente Crivella nas eleições de 2016. Que o corte seja o primeiro passo para um carnaval mais profissional, transparente e independente do dinheiro público, e que o velho e falso clichê que diz que “no Brasil, só o carnaval é organizado” um dia se torne verdade.

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