quinta-feira, 17 de agosto de 2017

513 Tiriricas eleitos com dinheiro público
Partidos são importantes. Não é porque os nossos estão em grande parte podres que devemos supor que chegaremos a melhor arranjo sem eles
Carlos Andreazza - O Globo 
Nunca foi tão premente lembrar a obviedade de que mudar nem sempre é para melhor. Perigosos são os ventos de mudança — brisa a afagar os oportunistas — quando ela, por si só, transforma-se em valor; ocasião em que mudar se constitui em solução independentemente do conteúdo daquilo que virá. Porque mudar significa tanto tirar quanto ter de colocar algo no lugar. E não sem o risco adicional próprio aos vácuos.
Escrevo isso a propósito do que chamam de reforma política. Não à toa, o mesmo enunciado serviria como crítica ao jacobinismo corrente, que cuspiu a política partidária na lama — e que fomenta as condições ideais para a ascensão de salvadores da pátria.
Entre os graves erros recentes cometidos pelos 11 supremos em que consiste o Supremo Tribunal Federal hoje, colegiado que tomou gosto por arroubos legisladores em agrado à pressão das ruas e, logo, em detrimento da Constituição, poucos terão sido maiores do que a determinação, de 2015, que proibiu o financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Algo equivalente a botar um edifício abaixo porque seus moradores não respeitavam a convenção do condomínio. Demolição feita sem considerar quais seriam os engenheiros do novo prédio — e o tipo de projeto que poderiam desenhar.
Jogando para a galera, the supremes retiraram o bode imundo da sala sem medir o elefante — não necessariamente limpo — que teria de entrar até setembro de 2017, data limite para que novas regras pudessem valer no pleito de 2018. Essa é a hipótese generosa — a de que não houvessem calculado integralmente o populismo da decisão. Há, porém, a realista: a de que soubessem muito bem a consequência do que estabeleciam.
Desde então, sem que se avaliasse o que sobraria como alternativa, a leviandade com que se demoniza toda relação entre política partidária e iniciativa privada teve crescente apoio da imprensa e a chancela daqueles operadores da Lava-Jato que trabalham contra a Lava-Jato. Nesse período, a criminalização do financiamento eleitoral por empresas foi completada pelo monopólio do Ministério Público sobre o instituto da delação premiada – precisamente, sobre o modo de manipular (e vazar) o teor da caguetagem.
Não tardaria, pois, a que se chegasse à bizarria segundo a qual mesmo contribuições legais fossem tratadas como propina, coisa tão impossível de provar, e do que seria necessário desconfiar (tanto mais se acusação vinda de quem só quer se safar), quanto golpe aleijador na atividade política, notadamente a legislativa. Quando, doravante, um empresário — um honesto — quererá botar dinheiro em campanha?
Um caminho sem volta, que deu no que deu: a engenharia do buraco que nos aprofunda do mal para o pior — porque o estamento político sempre encontra a arquitetura da própria sobrevivência.
Na última quarta, dia decisivo ao encaminhamento do sistema eleitoral que vigerá em 2018, o deputado Lucio Vieira Lima — presidente da comissão que cuida da reforma política — teve uma conversa de pé de ouvido captada pelo microfone. E o que falou o irmão de Geddel? “Já aprovamos o que queríamos. O resto, agora, se der voto, deu...”
E o que queria — e havia conseguido — esse patriota? Ora, qual a única maneira — a que restou — de pagar campanhas sem a contribuição de empresas? Isto mesmo: o financiamento público; que tira do Orçamento da União os bilhões que deveriam provir, com rígido controle, da iniciativa privada; que aumenta o peso do Estado na vida pública quando o deveríamos estar enxugando; que substitui um modelo de que o PT foi o maior beneficiário, cujo esgotamento fabricado é obra do partido, para instituir aquele que é sonho histórico do petismo. E todo mundo embarcou de novo...
Traído pelo microfone aberto, Vieira Lima expôs a concertação que uniu quase todos os partidos. Assegurar que o Estado banque as eleições do ano que vem era só o que interessava ao establishment político na falsa reforma, todo o resto sendo aperfeiçoamento periférico de mecanismos de preservação do status quo. Inclusive o tal distritão. Periférico, mas não inofensivo.
Para quem tem a democracia representativa como valor, distritão é retrocesso — triunfo da elite partidária em detrimento da vida partidária. Difícil encontrar modelo tão eficiente ao mesmo tempo para barrar a renovação parlamentar e minar o desenvolvimento dos partidos como centros de pensamento, de formulação de políticas públicas — algo de que estamos distantes, e do que, assim, escolhemos nos afastar ainda mais.
Partidos são importantes. Não é porque os nossos estão em grande parte podres que devemos supor que chegaremos a melhor arranjo sem eles. O distritão é prova disso, uma escolha antipolítica, que, ao eleger vereadores e deputados de forma majoritária, aparta-se do valor da representação para se escudar no personalismo. Sistema que cunha um parlamentar dono absoluto do próprio mandato — o que, associado ao financiamento público, forja um representante dispensado de prestar contas, igualmente a partido e sociedade, durante quatro anos.
Na Câmara, serão potencialmente 513 prefeitinhos. Aliás, terão já os detratores do modelo atual — os que reclamam de que a votação maciça num Tiririca elege legisladores sem votos — considerado que o distritão favorecerá a eleição de 513 Tiriricas?

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