Democracia, moral e reforma política
Não deve haver lugar para iniciativas que
facilitem a reeleição, contrariando o sistema democrático. Ato
parlamentar em causa própria foge à diretriz constitucional
Carlos Alberto Rabaça - O Globo
O Congresso Nacional saiu fora (sic) da órbita e ultrapassa os limites do
justo ou razoável quando, com o objetivo de aprovar uma autorreforma,
usurpa a soberania do povo e fere o artigo 1º da Constituição Federal,
cujo sistema de representação, segundo o Artigo 14, só poderá ser
alterado por plebiscito. O “distritão” ou “semidistritão”, ao incentivar
o descasamento entre a representatividade social e a parlamentar,
contribui para a confusão geral por facilitar a reeleição de deputados. A
Câmara parece com um tio às vezes ranzinza, mas essencialmente generoso
com seus afilhados. Como todo mundo espera, afinal entrega os pontos e
passa o dinheiro, dá a autorização ou concede bênçãos e, então, volta à
cadeira de balanço para outro ano de sonolência, interrompido apenas por
um olhar ocasional à rua e um resmungo de dúvida se fez a coisa certa.
Por textos constitucionais expressos, a nossa ordem política tem que
se basear na liberdade, na ordem social e econômica, na justiça e no
trabalho. Não deve haver, assim, lugar para iniciativas que visam a
facilitar a reeleição de deputados, atitude que contraria o sistema
democrático. Todo ato parlamentar em causa própria foge à diretriz
constitucional e cria o fermento da revolta, que cresce no espaço escuro
formado pelo desnível entre o plano da lei e o plano da realidade.
Na base da organização política, fixamos os princípios da ordem
social, irremovível fenômeno do nosso tempo. Na justiça social, na
liberdade de iniciativa, na valorização do trabalho, na ética devemos
assentar as instituições nacionais. Vivemos, hoje, uma crise que indica o
esgotamento do Estado brasileiro: a insustentabilidade do contrato
social da Constituição; a captura do Estado por grupos empresariais e
corporativos; a ineficiência estrutural na gestão pública,
potencializada pela corrupção em larga escala e o declínio da confiança
no Congresso.
O sistema político, como conhecemos, entrou em falência. O chamado
“presidencialismo de coalizão”, no seu colapso, trouxe à luz um Estado
aparelhado por gangues entre ideológicas e morais. Procuremos com
serenidade o ponto de convergência dessas linhas de ideias, que se
transformaram perigosamente em linhas de interesse. Nessa conjuntura
está a posição reclamada pelo pensamento e pela justiça. Poderá se dizer
que aí está uma solução de meio-termo, odiosa aos olhos dos arrebatados
e por demais serena numa hora dominada pelos ímpetos do fanatismo e de
interesses de toda ordem. Mas tenhamos coragem de assumir a posição
intermediária, não pela passividade dos que não querem combater, mas
pela disposição de não eliminar de nosso país valores que, de um e outro
lado, se afirmaram nos espíritos e aí deitaram raízes profundas. É
dever de todos os responsáveis lutar contra o progressivo esvaziamento
da democracia de seu conteúdo moral, com risco de transformá-la no reino
da demagogia e da corrupção, que são irmãs pela sua mesma origem na
impostura e ora falam aos ingênuos pela mentira das promessas, ora falam
aos fracos pela mentira do dinheiro.
Daí o erro de consequências sinistras dos que esvaziam a ordem
democrática do sentido ético, atentos à organização de interesses
particulares, e não à ordem social. O distritão ou qualquer modelo
semelhante não é adotado em nenhuma democracia avançada e não deve ser
adotado por ser espúrio e imoral.
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