Devagar com o andor
A reforma política que se desenha é um
deboche. No Brasil, teria um único objetivo: facilitar a reeleição, e a
imunidade parlamentar, de gente mais suja do que pau de galinheiro
Cid Benjamin - O Globo
Mesmo nas sociedades de classes mais injustas, existem mecanismos que
legitimam a dominação, que não se dá apenas pela coerção. Esses
mecanismos são, ainda, mais necessários em sociedades complexas como a
brasileira, com mais de 200 milhões de habitantes. Por isso, aqui, até a
ditadura militar se preocupou em manter aparências. Torturou e
assassinou opositores, mas na maior parte do tempo manteve o Congresso
aberto, ainda que emasculado.
Verdade que, às vezes, os mecanismos de legitimação beiravam o
ridículo, como quando o Congresso era reaberto para docilmente coonestar
decisão tomada pelas Forças Armadas, “elegendo” o general escolhido por
seus pares para o papel de ditador. Mas cumpriam uma função: procuravam
descaracterizar a existência de uma ditadura aberta. O regime era
apresentado, dentro e fora do país, como um tipo de democracia, digamos,
“relativa”, para usar expressão do general Geisel. O mesmo que, certa
vez, mostrou indignação ao ver a “democracia” brasileira comparada à de
Uganda.
Pois bem, não vou sugerir a leitura de Antonio Gramsci à turminha
braba que hoje governa o país. Seria perda de tempo. Mas não custa
lembrar algo.
É preciso que a institucionalidade permita válvulas de escape,
minimamente que sejam, para os anseios da sociedade. Vejam: eu disse
minimamente. Sei das limitações da democracia num país com tamanhas
desigualdades sociais. Sei que o exercício da cidadania política é
fortemente limitado para aqueles que não têm pão, trabalho, casa,
segurança ou outros direitos mínimos.
Mas é bom não abusar.
Não que a falta de legitimidade leve automaticamente a uma revolução
que ponha abaixo as estruturas injustas. Se fosse assim, menos mal. Mas
pode levar a explosões sociais descontroladas que radicalizem o clima de
barbárie e que não interessam a ninguém. Nem mesmo aos de cima.
Como alguma vez afirmou Artigas, herói uruguaio: “O hay pátria para todos, o no hay pátria para nadie”.
É bom que a cleptocracia instalada no poder e mais preocupada em
defender os interesses dos já muito ricos — banqueiros, rentistas,
agronégócio —, mais voltada para retirar direitos dos trabalhadores e
para barrar as investigações sobre a corrupção, pense nisso.
A reforma política que se desenha — com o tal “distritão”, sistema
que existe em apenas quatro países no mundo: Ilhas Pitcairn, Vanuatu,
Jordânia e Afeganistão, nenhum deles exemplo de democracia — é um
deboche. No Brasil, teria um único objetivo: facilitar a reeleição, e a
imunidade parlamentar, de gente mais suja do que pau de galinheiro.
Mesmo o parlamentarismo, que em determinados países pode ser
aceitável, hoje em nosso país significaria apenas retirar das mãos do
povo o direito de escolher seu governante, deixando-o nas mãos de um
Congresso desmoralizado.
O Brasil não é uma republiqueta de bananas. É uma sociedade complexa e
diversificada. Não aceitará que as instituições políticas se apartem
mais e mais do país real.
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