O pacto social da ruína
Vinicius Torres Freire - FSP
Ouvi uma vez de uma tia ou talvez tenha lido em um romance brasileiro
esquecido a lenda quem sabe real da família que se reduziu à miséria por
não chegar a um acordo sobre a divisão de uma herança. Um caso
simétrico de ganância com resultado ruinoso é o velho clichê de matar a
galinha dos ovos de ouro.
O gênero dessa história autodestrutiva que se passa no Brasil de agora parece uma combinação dessas perversões.
Por enquanto, a disputa e a mesquinharia a respeito de quem vai pagar a
conta da crise terminal das finanças do governo vão redundando em um
acordo tácito: inércia.
Não haveria cortes decisivos de despesas, não haveria impostos
relevantes a mais. As contas vão se acumular. A ruína então virá, mais
cedo ou mais tarde, aos poucos ou de modo explosivo, a depender das
voltas da economia do mundo lá fora. Por enquanto, se empurra com a
barriga, se aceita o impasse.
Ou melhor, é possível que a memória de ditaduras e inflações ressuscite
ou reforce nos membros menos ignorantes da elite, conscientes da crise, o
sentimento atávico de que sempre é possível esfolar o povaréu. "Menos
ignorantes": sim, há gente com voz, no topo ou no comando do país, que
de fato não se dá conta do tamanho inédito do problema fiscal e de suas
consequências.
Os mais espertos talvez imaginem que, mesmo sem crescimento, mesmo na
eventual e lenta regressão do Brasil de país médio a país pobre, será
possível passar a conta adiante, extrair o bastante para sustentar um
simulacro de padrão de vida de elite global enquanto o resto das gentes
se dana.
Não seria novidade. Ao contrário. É o padrão comum da história
brasileira. Vide o exemplo recente dos 15 anos de superinflação, de
quase nenhum crescimento, de crise contínua entre o colapso econômico da
ditadura e o Real.
Talvez contribua para a inércia e para ilusões a melhoria temporária que
virá depois desta recuperação econômica microscópica, cíclica, cortesia
também da calmaria nas finanças mundiais e da folga nas contas
externas, resultado da recessão horrível que reduziu nosso consumo de
modo brutal (exportamos mais que importamos porque empobrecemos).
Marolas externas, mudanças no custo mundial do dinheiro, podem, no
entanto, provocar desvalorizações do real e/ou aperto financeiro, juros
mais altos, perigo fatal para um governo tão endividado. A fim de
escaparmos do colapso, a alternativa seria um crescimento baixo em meio a
inflação alta, um dos nossos métodos habituais de passar a conta para o
povaréu.
Essa crise fiscal grave e, enfim, o cúmulo dos danos desse nosso Estado
disfuncional vão provocar um drama bíblico, hordas de miseráveis caindo
pelas ruas, pestes? Não. O crescimento seria cronicamente lento. Na
melhor das hipóteses, a pobreza ficaria estagnada. Problemas sistêmicos
de Estados precários, como o predomínio crescente do crime (vide o Rio),
vão se agravar aos poucos.
Pode haver choques, decerto, confrontos decisivos, uma imposição dura de
perdas a um grupo social, uma revolta popular contra a pobreza
persistente envenenada por um ambiente inflacionário. Os caminhos da
degradação ou do conflito podem ser vários. Ainda estamos brincando de
escolher o cano pelo qual vamos entrar.
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