Críticas à desocupação de Pinheirinho não levam em conta o Estado de Direito. Que as instituições funcionem — e não que se faça justiça por conta própria
Ricardo Setti - VEJA
E chegamos então à desocupação do terreno de 1,3 milhão de metros quadrados em Pinheirinho, no município de São José dos Campos, a 98 quilômetros de São Paulo, em operação realizada no domingo, 22, por 2 mil homens da Polícia Militar paulista, com o auxílio de helicópteros e carros blindados – atendendo a uma ordem judicial.
Algo como 1.500 famílias, ou seis mil pessoas, desalojadas, gente ferida, moradores presos, veículos incendiados.
Famílias, muitas ali desde 2004, que não teriam tido tempo de recolher seus poucos pertences, moradores espancados por policiais, aflição, desesepero.
E também má-fé de um dos líderes dos moradores, ligado ao PSTU — um partido que despreza a “democracia burguesa” e cujo modelo de democracia está mais próximo da Coreia do Norte — e, coerentemente, perturbando as negociações para que a desocupação se desse de forma pacífica.
Direitos humanos e exploração demagógica
Igualmente ex-moradores, já desalojados, sentindo-se humilhados pelo uso de pulseiras identificadoras — colocadas para que possam ser realocados, segundo explicações da Prefeitura de São José dos Campos –, brasileiros se queixando de violação de direitos humanos.
Junto a tudo isso, a demagogia de políticos e de certos comentaristas da mídia, que exploram o episódio e a miséria humana que ele encerra para qualificar de “fascista” o governo tucano de São Paulo, responsável pela Polícia Militar.
Não custa lembrar que a PM não agiu por sua conta: a corporação cumpriu ordem judicial — uma sentença exarada pela juíza de Direito Márcia Faria Mathey Loureiro, da 6ª Vara Cível da comarca de São José.
O Estado de Direito: fora da lei não há salvação
Isso leva a um ponto crucial da história toda que está muito pouco sendo levado em conta: a questão do Estado de Direito.
Não interessa se a desocupação se referia a um terreno que integra a massa falida da empresa de um notório aventureiro do mercado financeiro.
Não vem ao caso discutir se o eventual leilão do imóvel se destina a pagar dívidas a “ricos” — sempre lembrando que certamente a Prefeitura, o Estado e o próprio governo federal estão entre os credores.
A questão é: queremos ou não viver num Estado de Direito?
A única resposta civilizada aceitavel é “sim”.
Se queremos viver num Estado de Direito, uma ordem judicial tem que ser acatada.
Se à ordem da juíza estadual se contrapôs uma medida de um juiz federal que terminou não sendo cumprida, que o Conselho Nacional de Justiça verifique o que ocorreu e determine as providências cabíveis.
Se a Polícia Militar cometeu abusos, que sejam apurados e os responsáveis, punidos, inclusive com expulsão e cadeia, se for o caso.
Se os alojamentos provisórios em que as famílias estão instaladas são intoleráveis, que o Ministério Público entre em ação.
Se a legislação que permitiu o desalojamento é injusta e iníqua, que a sociedade se mobilize para alterá-la.
Se deputados e senadores, nossos representantes, são indiferentes aos problemas, que pensemos melhor na hora de escolher quem vai falar e agir em nosso nome no Congresso.
Sou daqueles que fecham com a velha frase de Rui Barbosa: “Fora da lei, não há salvação”.
Justiça por conta própria leva à baderna e ameaça a democracia
Invasão de terreno alheio é ação ilegal, é baderna, é, à sua maneira, violência.
Ninguém está autorizado pela Constituição a fazer justiça por conta própria.
Não ter casa não dá a nenhum brasileiro o direito de invadir e ocupar propriedade alheia.
Justiça por conta própria leva ao caos, à baderna, à desordem e, em última análise, à derrocada do Estado de Direito e da democracia, rumo certo para o autoritarismo: algum “justiceiro” tende a prevalecer e a mandar.
O caminho é exigir que as instituições funcionem
Precisamos exigir que as instituições funcionem, e não fazer justiça por conta própria.
E, com as limitações e problemas que existem em nosso país, algumas delas estão funcionando.
A Defensoria Pública do Estado já impetrou ação civil pública para obrigar judicialmente a Prefeitura a fornecer acolhimento de emergência aceitável aos desalojados, proporcionar transporte escolar para as crianças que viviam em Pinheirinho poderem frequentar aulas, e promover “atendimento habitacional” — inscrição rápida e eficaz no programa de habitações populares da cidade — aos ex-moradores de Pinheirinho.
O que ocorreu em Pinheirinho, microcosmo de um grande drama brasileiro, é triste.
Mas repito: fora da lei, não há salvação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário