A diplomacia fantástica e a política da estagnação
Rolf Kuntz - O Estado de S.Paulo
O governo estuda um novo pacote de ajuda às montadoras -
mais um de uma longa série. Na Venezuela persiste a escassez de
alimentos e até de papel higiênico. Prolonga-se o impasse nas
negociações comerciais entre o Mercosul e a União Europeia. Mais do que
nunca o Brasil depende da exportação de matérias-primas para o mercado
chinês, numa relação semicolonial. A economia brasileira deve crescer
entre 2,3% e 2,5% este ano, segundo o governo, ou nem 2%, segundo outras
fontes, perdendo o bonde da recuperação global. Todos esses fatos estão
estreitamente relacionados. São aspectos e consequências da opção do
governo brasileiro, a partir de 2003, pela diplomacia da mediocridade,
pelo caminho fácil do mais chinfrim populismo e pelo desfrute político e
pessoal da administração pública. A decadência da Petrobrás, rebaixada
de empresa a instrumento das fantasias, caprichos e interesses políticos
da Presidência da República, também é parte desse filme.
A exportação rendeu às montadoras US$ 2,9 bilhões no primeiro
trimestre deste ano, 15,3% menos que de janeiro a março de 2013. Os
números foram publicados pela associação das indústrias. A produção de
autoveículos foi 8,4% menor que a de um ano antes. Os empresários
atribuem os problemas em parte à retração do mercado interno e em parte
às dificuldades de embarques para a Argentina, destino de cerca de 80%
da exportações brasileiras de veículos.
Há algo obviamente errado nessa dependência. O Brasil importa carros
tanto de países avançados quanto de economias emergentes e de
industrialização recente, como Coreia, China e Índia. Nenhum desses
parceiros emergentes era mais industrializado que o Brasil nos anos 70,
mas todos, hoje, produzem marcas próprias, vendem para todo o mundo e
até investem por aqui. Sempre muito protegida, a indústria
automobilística brasileira ainda se acomodou nos estreitos padrões da
diplomacia comercial petista, concentrando suas exportações na
vizinhança. Com isso, aceitou uma dependência excessiva do mercado
argentino e, portanto, de um dos governos mais incompetentes, mais
populistas e menos confiáveis do mundo.
A diplomacia da mediocridade amarrou o Brasil a um Mercosul
estagnado, entravado por barreiras comerciais até no interior do bloco, e
deu prioridade, na região, a relações com países comandados por
governos autoritários. Num desses países, o governo realizou o quase
milagre de converter uma das maiores potências petrolíferas numa
economia com gravíssimos problemas de abastecimento, inflação acima de
50% ao ano e escassez de dólares.
Sem reservas cambiais, o governo venezuelano recentemente reteve US$
3,9 bilhões de companhias aéreas estrangeiras. Sem matéria-prima, a
indústria Alimentos Polar suspendeu a produção de duas marcas de massas
em uma de suas fábricas, segundo informou nesta semana o boletim
colombiano Notas Confidenciales, especializado em notícias regionais.
A crise do papel higiênico, um escândalo no ano passado, nunca foi
inteiramente superada. Uma estatal desse país, a PDVSA, deveria ter sido
parceira da Petrobrás na construção da Refinaria Abreu e Lima, em
Pernambuco. Mais uma vez a fantasia diplomática do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva resultou em custoso fracasso, perfeitamente
compatível com os atrasos de pagamentos a exportadores brasileiros.
Ainda fiel a esse terceiro-mundismo de circo, a presidente Dilma
Rousseff seguiu a companheira Cristina Kirchner, em junho de 2012, na
manobra para suspender o Paraguai do Mercosul e facilitar o ingresso da
Venezuela.
A opção pelo realismo fantástico da diplomacia Sul-Sul, subproduto de
um esquerdismo infantil, produziu o primeiro resultado em 2003-2004,
quando os presidentes Lula e Kirchner decidiram liquidar o projeto da
Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Essa decisão condenou o
Mercosul a perder o bonde da integração no mercado global, enquanto
outros países sul-americanos negociavam acordos com os Estados Unidos e
outros mercados desenvolvidos.
Lula e seus grandes conselheiros diplomáticos selecionaram como
parceiros estratégicos alguns dos maiores emergentes - China, Rússia,
Índia e África do Sul. Os governos desses países jamais incluíram o
Brasil entre seus parceiros prioritários. Tinham outros objetivos e
sempre se esforçaram muito mais para ampliar o comércio com as maiores
economias capitalistas. Sem acesso preferencial ao mundo rico - até
porque a Argentina sempre dificultou o acordo com a União Europeia -, o
Brasil perdeu espaço no mercado internacional de manufaturados. Passou a
depender muito mais do que antes da exportação de produtos primários e
facilmente se converteu em fornecedor de matérias-primas para a economia
chinesa.
Não há nada errado em exportar matérias-primas. Mas é um erro enorme
tornar-se muito dependente desse tipo de exportação enquanto a indústria
nacional perde dinamismo, competitividade e participação até em seus
principais mercados, como a América do Sul.
A política interna, marcada por uma combinação de populismo, gastança
federal, baixo investimento, desleixo com a educação, protecionismo,
aparelhamento e loteamento do governo e de suas empresas, tolerância à
inflação e desprezo à produtividade, levou a indústria à estagnação e
erodiu as contas externas. A economia cresceu em média 2% ao ano entre
2011 e 2013 e talvez nem isso seja alcançado em 2014.
A presidente Dilma Rousseff é apenas parcialmente responsável pelo
descalabro. A destruição começou no governo de seu antecessor. A
prosperidade internacional puxava o Brasil, ainda restava boa parte dos
fundamentos criados nos anos 90 e a demolição era menos visível, mas
estava em marcha. Subdesenvolvimento, escreveu Nelson Rodrigues, não se
improvisa.
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