Antibióticos provam-se impotentes diante da disseminação de super germes
Philip Bethge, Veronika Hackenbroch, Laura Höflinger, Michael Loeckx e Udo Ludwig - Der Spiegel
Os antibióticos já foram drogas incríveis. Hoje, contudo, um número crescente de bactérias altamente resistentes –e mortíferas- está se espalhando pelo mundo. Os germes fatais muitas vezes se originam nas criações de animais, que são medicados estando ou não doentes
Os patógenos prosperam em ambientes quentes e úmidos. Eles se sentem confortáveis nas axilas, na região genital e nas mucosas nasais. Seus territórios de caça são os vestiários de escolas e universidades, assim como nos chuveiros comuns de prisões e clubes.
As bactérias são transmitidas pela pele, pelas toalhas, pelas roupas ou por contato direto. Só o que é preciso é uma pequena abrasão para dar-lhes acesso ao fluxo sanguíneo da vítima. Feridas purulentas se desenvolvem no ponto da infecção, quando os patógenos também podem corroer os pulmões. Se os médicos esperarem demais, os pacientes podem morrer muito rapidamente.
Foi isso precisamente o que aconteceu com Ashton Bonds, estudante de 17 anos da Escola Staunton River High, em Bedford, no Estado norte-americano de Virgínia. Ashton passou uma semana lutando por sua vida –e perdeu. Foi provavelmente isso que aconteceu a Omar Rivera, um menino de 12 anos em Nova York, enviado para casa pelos médicos que acharam que estava exibindo sintomas de alergia. Ele morreu naquela mesma noite.
A mesma coisa quase aconteceu em uma escola de ensino médio na cidade de Belen, no Novo México. Há menos de duas semanas, uma dançarina da torcida da escola foi hospitalizada depois de reclamar de um abcesso. Doze outras alunos tinham tido feridas suspeitas. Todas as meninas deram resultado positivo para uma bactéria que a mídia norte-americana chamou de “supergerme”.
A administração da escola em Belen acredita que a bactéria foi disseminada em colchonetes das salas de ginástica da escola. As instalações foram desinfetadas cuidadosamente 40 vezes, e ainda assim o pânico permanece.
Medo de uma pandemia
Os microbiólogos referem-se a essa bactéria como Staphylococcus aureus resistente a meticilina adquirida na comunidade, ou ca-Mrsa. O que é aterrorizador sobre ela é sua resistência a quase todos os antibióticos comuns, o que complica o tratamento. E, em contraste com as cepas adquiridas em hospital da Mrsa (ha-Mrsa), que em geral afetam os idosos e os hospitalizados, a ca-Mrsa afeta jovens saudáveis. A bactéria tornou-se uma ameaça séria à saúde nos EUA. Os médicos já a encontraram na Alemanha, apesar de não terem sido atribuídas mortes a ela neste país.
As duas bactérias, ha-Mrsa e ca-Mrsa, são apenas duas cepas de todo um arsenal de patógenos que hoje são resistentes a quase todos os antibióticos disponíveis. Menos de um século após a descoberta da penicilina, uma das armas mais milagrosas jamais produzidas pela medicina moderna pode se tornar ineficaz.
A revista médica britânica “The Lancet” adverte que as bactérias resistentes a drogas podem gerar uma “pandemia”. Na Alemanha, os patógenos perigosos não são somente os temidos “germes de hospital” encontrados nas UTIs. Em vez disso, estão em toda parte.
Cerca de duas semanas atrás, os consumidores ficaram alarmados com os resultados de uma análise de carne de frango do grupo ambientalista Amigos da Terra da Alemanha (Bund), que encontrou bactérias resistentes a várias drogas em mais da metade das partes de galinhas compradas em supermercados.
As perigosas bactérias foram até detectadas em um dos trens de alta velocidade da Alemanha, o ICE. Da mesma forma, mais de 10% dos moradores dos lares de idosos na Alemanha foram colonizados pelas Mrsa. Neste caso, cada ferida aberta é potencialmente mortífera. Os patógenos também foram encontrados na carne, no porco e nos legumes.
Outra descoberta alarmante é que cerca de 3 a 5% da população carrega no intestino, sem saber, as chamadas bactérias produtoras de beta-lactamase (Esbl). Até mesmo os antibióticos modernos são completamente ineficazes contra essas bactérias altamente resistentes.
Defesas reduzidas
Quando a UTI neonatal de um hospital na cidade do Norte da Alemanha de Bremen foi infectada com uma bactéria do grupo Esbl no último outono, três bebês prematuros morreram.
A infecção com a bactéria resistente é normalmente inofensiva para indivíduos saudáveis, porque seus sistemas imunológicos podem manter os patógenos sob controle. Os problemas surgem quando um indivíduo fica seriamente doente.
“Tome por exemplo uma pessoa que faça uma cirurgia e precise de respiração artificial e de um cateter venoso ou urinário”, explica Petra Gastmeier, diretora do Instituto de Higiene e Medicina Ambiental no hospital Charité de Berlim. “Em tal caso, a bactéria intestinal resistente pode entrar nos pulmões, no sangue e na bexiga”.
Isso resulta em infecções do trato urinário, pneumonia ou sepsia, que cada vez mais só são tratáveis com os chamados antibióticos de reserva, ou seja, drogas para emergências que só deveriam ser administradas quando os antibióticos comuns não são mais eficazes.
A disseminação dos germes mortíferos
Recentemente, surgiu uma ameaça ainda maior. Com a disseminação das bactérias produtoras Esbl, os antibióticos de reserva têm que ser usados mais frequentemente, permitindo que novas resistências se desenvolvam. De fato, já há alguns patógenos que nem as drogas de último recurso no arsenal médico podem combater.
Na Índia, onde a falta de higiene e a facilidade para se adquirir antibióticos sem receita médica estimularam o desenvolvimento de resistências, estima-se que entre 100 e 200 milhões de pessoas já sejam portadoras dessas bactérias virtualmente indestrutíveis. Só restou um antibiótico –uma droga que normalmente não é utilizada devido aos seus efeitos colaterais potencialmente fatais- que ainda é eficaz contra essas bactérias mortíferas. Em casos sérios, as pessoas infectadas com esse tipo de patógenos morrem de infecções do trato urinário, feridas ou pneumonia.
Os germes fatais também chegaram ao Reino Unido, presumivelmente levados por turistas que viajaram para a Índia para fazer cirurgia cosmética. Centenas de pessoas já foram infectadas. Alguns casos também surgiram na Alemanha. Israel até experimentou um surto nacional há poucos anos. Em poucos meses, cerca de 1.300 pessoas foram afligidas por uma bactéria extremamente perigosa, que matou 40% dos pacientes infectados. Até hoje, a mesma bactéria ainda faz adoecer cerca de 300 pessoas por ano.
A era pós-antibióticos
Essa rápida disseminação levou muitos a se perguntarem se logo as pessoas na Alemanha morrerão de doenças infecciosas que eram supostamente tratáveis, como acontecia nos séculos passados. Infelizmente, há muitas indicações de que este talvez seja o caso.
“Estamos avançando para a era pós-antibióticos. Mas não vai acontecer em um dia, ou ao mesmo tempo no mundo todo. E esta é a tragédia, porque isso significa que a questão não é percebida como um problema sério”, prevê Yehuda Carmeli, do Centro Médico Sourasky de Tel Aviv.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) recentemente advertiu contra uma iminente catástrofe médica. E no “The Lancet”, especialistas em saúde publicaram um apelo urgente: “Observamos de forma passiva demais enquanto a reserva de drogas que nos serviu tão bem foi roubada de seu valor. Exortamos nossos colegas no mundo todo a se responsabilizarem pela proteção desse recurso precioso. Não há mais tempo para silêncio e complacência”.
De fato, o descuido pelo qual os médicos e produtores rurais estão ameaçando a eficácia de um dos grupos mais importantes de drogas beira a loucura. Cerca de 900 toneladas de antibióticos são administradas ao gado por ano só na Alemanha. Em vez de tratar apenas os que estão verdadeiramente doentes, os criadores rotineiramente dão medicamentos a todos seus animais. Da mesma forma, cerca de 300 toneladas de antibióticos são usadas para tratar seres humanos por ano, muitas vezes receitadas para pessoas que sofrem de um resfriado comum.
Um inimigo ajudado por nós
Este uso em larga escala inevitavelmente leva à disseminação de germes resistentes. De fato, os antibióticos oferecem condições de crescimento ideais para as bactérias individuais que se tornaram naturalmente resistentes, por meio de uma pequena mudança em sua composição genética. Simplesmente, elas se beneficiam do fato que os antibióticos matam seus competidores, ou seja, as bactérias não resistentes.
Em muitos casos, não é nem necessário que haja uma mutação genética para permitir que uma bactéria se torne resistente. As bactérias podem incorporar pedaços de material genético de outros patógenos. Por exemplo, por milhões de anos, o gene da resistência ao Esbl estava dormente no solo, quando era parte de um complicado ecossistema de bactérias, fungos produtores de penicilina e raízes das plantas. Repetidamente, o gene foi incorporado por bactérias intestinais humanas. Contudo, foi somente o uso de larga escala de antibióticos que forneceu às bactérias produtoras de Esbl a oportunidade de se proliferarem.
Estudos recentes mostram que quantidades de antibióticos muito menores do que se pensava podem levar ao desenvolvimento de resistência. Em retrospecto, a recomendação descontrolada de antibióticos provou-se um enorme erro. “Nos últimos 30 anos, contaminamos nosso ambiente com antibióticos e bactérias resistentes”, diz Jan Kluytmans, microbiologista do Hospital Amphia, na cidade de Breda na Holanda. “A questão é se isso é reversível. Talvez possamos impedir somente que o pior aconteça agora”.
Níveis chocantes de abuso de antibióticos nas criações
Como uma grande parcela das bactérias resistentes vem das fazendas, será crítica a redução drástica do uso de antibióticos na agricultura. Muitas vezes, os fazendeiros, os tratadores e os veterinários são os próprios portadores das bactérias multirresistentes. Kluytmans até demonstrou que os patógenos encontrados em humanos são muitas vezes geneticamente idênticos às bactérias encontradas na carne.
É virtualmente impossível se infectar comendo tal carne, ao menos enquanto for bem cozida. O risco surge quando carne crua entra em contato com pequenos ferimentos. Além disso, plantações de vegetais podem ser contaminadas quando o esterco líquido é espalhado nos campos.
Gases de exaustão emitidos por criadores gigantes de porcos e frangos também podem ser um perigo ainda maior do que se pensava. Essas fábricas de carne sopram bactérias, vírus e fungos no ar.
A Renânia do Norte-Vestfália também foi o primeiro Estado alemão a sistematicamente investigar o uso de antibióticos nas granjas. A conclusão terrível foi que mais de 96% de todos os animais tinham recebido essas drogas –algumas vezes até oito remédios diferentes- em suas curtas vidas de apenas algumas semanas. “Isso prova que a exceção –ou seja, o tratamento de doenças- virou a regra”, diz Johannes Remmenl, membro do Partido Verde e ministro de proteção ao consumo do Estado.
Condições de criação abismais
Segundo os resultados da investigação, as criações de animais são culpadas. Quanto maiores as operações, mais antibióticos são administrados aos animais individualmente. Os investigadores também notaram que a duração do uso de antibiótico em geral era muito curta –mais curta do que o exigido nos requerimentos de licenciamento. Isso economiza dinheiro, mas também promove a formação da resistência.
O fato de os criadores misturarem o antibiótico na ração tem a ver com as condições da produção nas criações:
- Para produzir vitela, os animais de diferentes fontes, que são fracos demais para a produção de leite ou carne –e igualmente mais suscetíveis a doenças infecciosas, muitas vezes são trancados em cercados lotados.
- Os porcos em geral são mantidos em espaços muito pequenos, tornando-os muito agressivos e levando-os a brigarem. Suas feridas têm que ser tratadas com antibióticos.
- No passado, eram necessários 80 dias até que as galinhas estivessem prontas para o abate. Hoje, são apenas 37. Os produtores têm uma margem de lucro de apenas alguns centavos por animal. Para minimizar as perdas por doença, os produtores e seus veterinários usam antibióticos como ferramenta preventiva.
Contudo, a produção em grande escala também é possível sem o uso descontrolado de antibióticos. Por exemplo, o gado leiteiro em geral não recebe essas drogas, pois os antibióticos interferem na produção de queijo e iogurte. Ainda assim, há muitos produtos baratos do leite nas prateleiras dos supermercados.
“Na Holanda”, diz Kluytmans, “o uso de antibióticos na criação animal foi reduzido em 30% em dois anos –parcialmente como resultado de regulamentos mais rígidos para veterinários. Isso é mais do que administramos para humanos”.
Infelizmente, acrescenta, o uso de antibióticos nas criações é praticamente uma questão de crença religiosa.
Esforços para combater o abuso
No início de janeiro, Ilse Aigner, ministra de alimentos, agricultura e proteção ao consumidor da Alemanha, revelou um pacote de medidas para conter o uso de antibióticos nos animais. As medidas incluíam maiores controles que tornariam mais difícil acrescentar à ração animal os antibióticos urgentemente necessários na medicina humana. O governo federal da Alemanha também está considerando suspender o direito dos veterinários de dar remédios. Em contraste com os médicos, que receitam drogas que devem ser compradas nas farmácias, os veterinários podem até vender diretamente as drogas aos fazendeiros e proprietários de criações, o que significa que podem lucrar belamente com o uso de grande escala dos antibióticos.
Contudo, Remmel, secretário da proteção do consumidor da Renânia do Norte-Vestfália, acredita que as propostas de Aigner são “enganosas” e quer saber a exata especificação na quantidade de antibióticos que pode ser usada.
Da mesma forma, há pouco controle no uso de antibióticos para humanos. Na Alemanha, em particular, os médicos receitam antibióticos quando julgam necessário, enquanto na Holanda, eles devem primeiro se consultar com um microbiologista.
“Como na terapia da dor, deveria haver especialistas para tratamento com antibióticos. Mas os jovens médicos, em particular, muitas vezes são relativamente desinformados”, diz Gastmeier, diretor do Instituto de Higiene e Medicina Ambiental do hospital Charité em Berlim. De fato, na escola de medicina, eles aprendem muito pouco sobre o uso adequado de antibióticos.
Pouca pesquisa de novos antibióticos
Ainda assim, mesmo que os médicos sejam mais cuidadosos ao receitarem antibióticos, dificilmente isso deterá o avanço das bactérias resistentes no longo prazo. E o que é pior, há poucos novos antibióticos no horizonte. Somente quatro empresas farmacêuticas no mundo todo ainda trabalham no desenvolvimento de novos agentes.
“Os antibióticos são um problema sério, porque realmente funcionam”, diz Wolfgang Wohlleben do Instituto de Microbiologia da Universidade de Tübingen, no sudeste da Alemanha. De fato, as drogas podem combater uma infecção em poucas horas ou dias e depois não são mais necessárias. Por outro lado, pacientes que tomam remédios para combater a pressão alta ou a diabetes muitas vezes têm que tomá-los para o resto da vida –o que se traduz em lucros constantes e confiáveis para as empresas farmacêuticas.
Outro fator que torna a pesquisa em antibióticos pouco atraente é o fato de médicos só poderem receitar um antibiótico novo em emergências mais extremas, para que não perca a eficácia em pouco tempo.
Diante dessas circunstâncias, as grandes empresas farmacêuticas pararam de fazer pesquisar novos antibióticos anos atrás. Hoje em dia, apenas pesquisadores universitários ou pequenas empresas estão interessados no campo.
Abandonados pela grandes farmacêuticas
Na realidade, a busca por novas drogas deve ser mais fácil e não mais difícil. Nos anos 90, as grandes firmas farmacêuticas gastaram milhões de euros buscando fraquezas na composição gênica das bactérias. Mas apesar dos pesquisadores de fato terem sucesso, as drogas subsequentemente desenvolvidas nunca fizeram o último salto para o uso clínico.
“No final, os riscos da pesquisa de antibióticos foram simplesmente grandes demais para as empresas”, disse a farmacêutica Julia Bandow, que voltou para a academia para continuar estudando os antibióticos, após trabalhar para a gigante farmacêutica americana Pfizer por seis anos.
Contudo, sem as grandes farmacêuticas, há pouca esperança de progresso. Afinal, testar uma droga em humanos leva anos e custa milhões. E, como diz Bandow sobre os acadêmicos, “não podemos fazer isso sozinhos”. Se as empresas farmacêuticas se recusam a investir nos estudos necessários, é crítico que o governo intervenha. Ao menos, os políticos podem tornar o desenvolvimento de antibióticos mais atraente. Eles podem, por exemplo, estender o tempo de duração das patentes, para que as empresas possam ter retorno de seus investimentos por mais tempo. Até agora, porém, há apenas ideias.
“Em algum ponto nos próximos anos”, diz o microbiologista Kluytmans, “haverá um desastre envolvendo patógenos resistentes com muitas mortes. Somente então algo vai mudar”.
Traduzido do alemão por Christopher Sultan e do inglês por Deborah Weinberg
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