domingo, 30 de setembro de 2012

Espanhóis encontram bons salários e enfrentam fraudes na colheita de uvas na França
Joseba Elola - El Pais
Miguel está aprendendo a jogar bocha, está tendo aulas de francês, está se reinventando nos grandes vinhedos de Bordeaux. Saiu da Espanha em uma caminhonete, fugindo da crise, e encontrou uma nova vida no Médoc, região vinícola no sul da França. Tem 33 anos e a crise o estava deixando fora de combate na Espanha.
A paralisação do setor da construção fez que ele deixasse para trás dez anos no caminhão, e não havia fretes para fazer. Os apertos econômicos atrapalharam tudo: adeus à moto, adeus ao aparelho dentário do menino, bem-vindo o carro com os pneus carecas... Recém-banhado, com um suéter limpo, óculos de sol pendurados da camiseta, explica que os problemas econômicos afetaram sua relação amorosa e acabou se separando da mulher.
Miguel Flores, original de Montellano, em Sevilha, conta isso sentado ao lado de seu compadre José Manuel Bellido, de Morón de la Frontera, também em Sevilha. É quarta-feira à tarde e o sol cai sobre os vinhedos que cercam a localidade de Vertheuil, a uma hora e meia de carro de Bordeaux. José Manuel Bellido, 37 anos, também é uma vítima da bolha da construção: trabalhava como pedreiro no setor e ficou desempregado. José Manuel também se separou e abraça uma nova vida entre uvas e cepas bordalesas.
Miguel e José Manuel são dois dos muitos espanhóis que há um ano e meio acorrem a Bordeaux quando chega a época da colheita da uva. A Federação Agroalimentar de Comissões Operárias da Andaluzia estima que neste verão a demanda de emprego para a vindima na França cresceu 60% em relação a 2011. Mas não a oferta de trabalho, que em termos globais vem diminuindo: cada vez se veem mais máquinas e há necessidade de menos mãos.
Os laços entre a vindima francesa e os trabalhadores espanhóis vêm de longe. Que o digam Antonio, que há 39 anos comparece todos os meses de setembro ao Médoc para colher uvas. A primeira vez que pisou nos vinhedos do Château Montrose tinha 16 anos e vinha acompanhando seu tio. Aos 55, agora ele é o encarregado de trazer todos os anos para esta prestigiosa propriedade em Bordeaux cerca de 60 trabalhadores de Pruna, seu povoado na província de Sevilha. Uma localidade de cerca de 3 mil habitantes, Pruna e o Château Montrose estão irmanados há mais de 41 anos.
Às 15h15 da quarta-feira, o ônibus com 62 trabalhadores procedentes de Pruna faz uma parada no caminho em uma cafeteria de Boceguillas, província de Segóvia. Antonio, com seu forte sotaque andaluz e seu bigode espesso em movimento, conversa com Gabriel Garrido, o motorista, que aproveita a parada para fumar um cigarro. Saíram às 18h30 de terça-feira de Pruna e pretendem chegar por volta do meio-dia de quarta-feira ao castelo, situado em St. Estèphe. Antonio organiza todo ano a expedição de trabalhadores para o Château Montrose.
No ano passado trabalharam pouco mais de 20 dias e embolsaram 2.475 euros (R$ 6.435). O château lhes paga a viagem e o alojamento, e assim voltam ao povoado com o dinheiro praticamente intacto. "Este ano o dobro de pessoas me procuraram pedindo um contrato", afirma. Nesta temporada serão cerca de 14.700 trabalhadores espanhóis que participarão da vindima, conta em seu carro Jesús Acasuso, secretário de política social da Federação de Indústria e Trabalhadores Agrários da UGT (Fitag), enquanto percorre o sul da França para ver em que condições se trabalha. Participarão cerca de 700 trabalhadores a mais que no ano passado, diz ele, enquanto seu automóvel passa perto da localidade de Rivelsaltes, no Languedoc.
O ônibus dos vindimeiros de Pruna corta a noite rumo à França. Os prunenhos dormem, que amanhã começa a faina. Dormir, o que se diz dormir, se dorme pouco ou mal, quando há 63 lugares e 62 pessoas viajando. Além disso, a cada três horas há uma parada.
Com as primeiras luzes do dia, as pessoas começam a se espreguiçar. Às 9h30, já em território francês, o ônibus vai se animando. Nas primeiras filas do ônibus, a crise e os cortes dominam a conversa.
Antonio trouxe este ano seu sobrinho Francisco, 22, que estuda engenharia industrial em Sevilha. Ele usa os 2.475 euros, todo ano em que consegue vir, para pagar o aluguel do apartamento na capital andaluza. Está escandalizado com o aumento das taxas na universidade, vai ter de pagar 325 euros (R$ 845) por uma matéria.
"Na minha faculdade, 30% da classe não poderão continuar estudando devido ao aumento das taxas", afirma, segurando seu iPad de capa vermelha, onde leva todas as suas anotações. À noite, quando acaba o trabalho nas vinhas, ele estuda; vai perder três semanas de aulas. Sua ideia é ir para a Alemanha quando acabar o curso. "Na Espanha, depois de um curso tão complexo, não valorizam seu esforço", diz enquanto afasta a franja da testa.
O ônibus da Autocares Bibiano segue pela avenida cercada de plátanos que dá entrada ao Château Montrose, em St. Estèphe, a pouco mais de 75 quilômetros de Bordeaux. Paco Bibiano, o dono da empresa de ônibus, conta por telefone que este ano levará 18 veículos com trabalhadores andaluzes do campo para a França, sete para a vindima. "Antes ninguém queria ir, não queriam o campo, preferiam trabalhar na construção." Sim, as pessoas preferiam. Mas estes não são tempos para muitas preferências.
À esquerda do caminho de entrada para o château estão as instalações em que se hospedam os 62 trabalhadores. Apresentam um estado impecável, e Antonio as mostra com orgulho: um enorme televisor de plasma para as noites, duchas muito limpas e modernas, quartos com camas quase novas ladeadas por abajures de tecido vermelho, refeitório com vista para o vinhedo, claraboias que iluminam bem as escadas... Nada a ver com os barracões com telhados de amianto e os velhos colchões de muitas propriedades de Huelva na temporada de morangos, indica Francisco Luque, um dos trabalhadores, de 36 anos.
O garçom que os recebe, Martin, fala muito bem o espanhol. Aqui todo dia se toma o desjejum, se almoça e janta com mesa posta. "Isto parece umas férias, só de não precisar fazer comida...", diz entusiasmada Charo Barroso, a mulher de Antonio, no dia seguinte, quinta-feira, já com a roupa de trabalho, enquanto retira as folhas das vinhas. Seu concunhado, Luis, usa uma faixa para proteger os rins. Aos 44 anos, trabalhava havia 21 no setor da construção. Tem três hérnias de disco e vão lhe atribuir o transporte da uva; agachar-se não faz bem para suas lesões. Em março passado ficou desempregado e falou com seu cunhado Antonio, que o inscreveu no grupo. É sua primeira vez em Médoc.
Hervé Berland, gerente do Château Montrose, fala maravilhas dos espanhóis de Pruna. "Trabalham muito bem, são verdadeiros profissionais; têm boa técnica e sua ação é muito precisa com as uvas", explica, sentado em uma poltrona de seu escritório senhorial. Um homem elegante de 62 anos, Berland conta que no château não se utilizam máquinas para a colheita, tudo é feito à mão. Nesta propriedade de 95 hectares se faz vinho desde o início do século 19. O Château Montrose, o grande vinho da propriedade, tem um preço que oscila entre 100 e 350 euros (entre R$ 262 e R$ 786), conforme a safra. Essa propriedade paga o transporte de ida e volta de seus trabalhadores, a alimentação, os aloja em muito boas condições. Mas nem sempre esse é o caso no campo francês.
Há um ano e meio as situações de exploração começaram a mostrar sua face suja. Trabalhadores provenientes de Mali, de Burquina Fasso, do Saara Ocidental e do Marrocos, entre outros, alguns deles com permissão de residência na Espanha, se aventuraram em busca da vida nesta região. Dormem em casas abandonadas, em carros à beira da estrada, e vão procurando desesperadamente trabalho. É o caso de Nelu Gubendreanu, um romeno de 36 anos.
Na quinta-feira à tarde, o sol já está se deitando e Nelu cruza uma floresta nos arredores de Pauillac, a 68 quilômetros de Bordeaux. Ao fundo, um grupo de jovens vindimeiros franceses de aparência "punk" se aquecem em torno de uma fogueira, cercados de cães, junto de seu trailer. Nelu encontrou uma velha casa onde pode passar as noites. Tem teias de aranha coladas ao cabelo.
Trabalhou durante dez anos em Valência como pintor, como caminhoneiro, como pedreiro. Mas veio a crise. Em castelhano perfeito, explica que durante um ano e quatro meses recebeu o seguro-desemprego. Com isso tinha com que alimentar sua mulher e os filhos, de 2 e 4 anos. Mas o subsídio acabou. As lágrimas sobem a seus olhos quando menciona os filhos.
Chegou há três semanas a esta região e não encontra trabalho. Veio de trem e está pensando em voltar. Não fala francês e acha muito difícil conseguir um emprego. Diz que só tem 1,50 euro no bolso.
Também há espanhóis que vêm buscar trabalho e acabam dormindo no carro ou na caminhonete para evitar pagar o alojamento. Alguns vêm da Andaluzia e Extremadura. Muitos são de origem magrebina. É o que conta em uma sala da prefeitura de Pauillac Danièle Mérian, vereadora socialista, adjunta em questões de segurança, moradia e patrimônio.
Há cerca de dez anos proliferaram na região empresas prestadoras de serviços vitícolas que se dedicam a recrutar pessoal para as temporadas de trabalho nos châteaux. A vereadora, professora aposentada de 60 anos, lembra com nostalgia dos dias em que seu avô trabalhava na adega do Château Lynch-Bages. Naquela época, os châteaux empregavam 70 ou 80 trabalhadores durante o ano todo, ela conta, trabalhadores que progrediam e melhoravam seus salários ao longo da carreira.
Mas hoje vivemos no mundo da subcontratação. "O problema é que nem todas as empresas prestadoras de serviços são honestas", diz Mérian. Algumas, diz ela, pagam só 5 euros (R$ 13,10) por hora, quando o salário mínimo estipulado é de 9,44 (R$ 24,73). Há prestadores de serviço que declaram menos dias e menos horas que os trabalhados, para pagar menos cotizações sociais. A velha tradição de hospedar os temporários está desaparecendo.
Antonio Requena, vindimeiro de 53 anos original de Villacarrillo (Jaén), denuncia ter sido vítima das trapaças de uma dessas empresas. Chegou à região em abril do ano passado e durante uma semana trabalhou para um francês de origem magrebina que não lhe deu contrato nem ofereceu alojamento. "Alguns dias nos pagava 7 euros (R$ 18,34) porque dizia que não tínhamos cumprido nosso trabalho", explica. "Nos enganou, disse que nos ofereceria hospedagem e tivemos de ir para um camping." Requena não aguentou mais de uma semana nessas condições. Um trabalhador que está há vários anos na região denuncia que muitos empregadores não pagam as horas extras e que esteve em ambientes de trabalho nos vinhedos "de dano psicológico".
Danièle Mérian fica indignada com esse estado de coisas. "Os grandes proprietários conhecem a situação e a aceitam. O contraste é enorme: por um lado, as grandes fortunas que há neste território de grandes vinhos, e por outro os trabalhadores das vinhas, cada vez mais miseráveis", protesta energicamente a vereadora. "É injusto, é grave, e enquanto eu puder lutarei contra essa forma de escravidão moderna."
Em 18 de maio passado, a prefeitura de Pauillac enviou uma carta à Direção Regional de Empresas, Concorrência, Consumo, Trabalho e Emprego de Bordeaux à qual "El País" teve acesso. Nessa missiva constatava a chegada de muitos europeus do espaço Schengen que estavam se instalando na região. Advertia sobre a precariedade da situação desses trabalhadores, as condições sanitárias preocupantes, e pedia que fossem tomadas medidas para que "o código de trabalho seja respeitado". A carta mencionava três empresas prestadoras de serviços e vários castelos. Jean Michel Case, o representante destes, afirma por telefone que todos os indicados passaram pelo controle da polícia e autoridades.
Esta semana começará grande parte da vindima nos vinhedos de Pauillac. Na prefeitura, teme-se que voltem as ondas de pessoas desesperadas em busca de trabalho, e que algumas propriedades decidam explorar a situação dos que vivem na miséria. 
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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