Os americanos, que criticaram a indignação dos muçulmanos diante da blasfêmia, tiveram reações parecidas quando artistas representaram Cristo
Edward Blum e Paul Harvey - NYT/OESP
NOVA YORK - Os assassinatos de quatro americanos em razão de um vídeo amador
sobre Maomé exibido na internet, assim como a tentativa de matar um cartunista
dinamarquês que, em 2005, desenhou o profeta com uma bomba no turbante, deixaram
muitos americanos confusos, revoltados e assustados com a indignação de alguns
muçulmanos pela representação de suas figuras sagradas.
A confusão decorre, em parte, do fato de que, na cultura americana, as imagens sagradas se encontram em toda parte. Deus, Jesus, Moisés, Buda e outras figuras semelhantes aparecem em filmes, desenhos, igrejas e até mesmo nas paredes das salas de estar. Nós as estampamos nas camisetas, nos para-choques dos veículos e chegamos a tatuá-las na pele.
Entretanto, os americanos têm toda uma história de conflitos, alguns deles mortais, em razão da exposição do sagrado. O caminho para o debate civilizado sobre tais representações não é nem breve nem fácil.
Os EUA foram colonizados, em parte, por protestantes radicais iconoclastas da Grã-Bretanha, que consideravam a criação e o uso de imagens sagradas uma violação do segundo mandamento contra a representação de imagens.
Os colonos inimigos dos católicos, de Plymouth e de Massachusetts Bay, recusaram-se a colocar Jesus em suas igrejas e casas de oração e apagaram as cruzes dos livros. No início dos anos 1740, as autoridades britânicas invadiram uma comunidade indígena, no lado ocidental de Connecticut, para interrogar missionários morávios que possuiriam um livro que teria impressa "a imagem do nosso Salvador".
Os colonos temiam a infiltração de católicos do Canadá, controlado pelos britânicos. Pouco depois do episódio do Tea Party de Boston (a destruição do chá britânico pelos colonos), um pastor de Connecticut advertiu que, se os britânicos vencessem, tirariam as Bíblias dos colonos, que seriam obrigados a "orar para a Virgem Maria, adorar imagens, acreditar na doutrina do purgatório e na infalibilidade do papa".
Não eram apenas os protestantes que se opunham às imagens sagradas. No sudoeste do país, os índios da tribo pueblo, que combatiam os colonos espanhóis, não só queimavam e quebravam alguns crucifixos, mas até mesmo defecavam sobre eles.
No início da república, muitos americanos evitaram retratar Jesus ou Deus. O pintor Washington Alliston, falando em nome de muitos artistas, em 1810, disse: "Acho essa figura muito santa e sagrada para me sentir tentado a pegar no lápis". Um diplomata russo em visita à colônia, Pavel Svinin, ficou impressionado com a difusão de uma outra imagem: a de George Washington. "Todo americano acha seu dever sagrado ter um retrato de Washington em sua casa", escreveu. "Assim como nós temos as imagens dos santos de Deus."
Mudança. Somente no fim do século 19, as imagens de Deus e de Jesus tornaram-se comuns nas igrejas, nas escolas, nas Bíblias e nos lares. Diversos elementos influíram para tanto: as impressoras a vapor, os novos canais e as estradas que traziam uma variedade de crucifixos, imagens de Nossa Senhora e de santos.
Os protestantes começaram a produzir suas próprias imagens - frequentemente, para atrair as crianças - e, aos poucos, sentiram-se mais à vontade com imagens sagradas. No século 20, os EUA passaram a exportá-las, principalmente a Cabeça de Cristo, de autoria de Warner Sallman, de 1941, uma das mais reproduzidas no mundo inteiro.
No entanto, houve também alguma resistência. Quando Hollywood começou a retratar Jesus em filmes, um cristão fundamentalista revoltou-se: "O retrato da vida e dos sofrimentos do nosso Salvador, que fazem essas instituições, é uma forma de blasfêmia".
Vernon E. Jordan Jr., um negro americano que posteriormente se tornou presidente da National Urban League e foi assessor do presidente Bill Clinton, lembrou que, quando representou Jesus na época em que estudava na Universidade DePauw, em Indiana, nos anos 50, os espectadores brancos na plateia ficaram abismados.
Na realidade, a raça tem sido um motivo constante de conflito nos retratos americanos de Jesus. Na Filadélfia, nos anos 30, o pregador negro F. S. Cherry entrava nas igrejas negras e, apontando para pinturas ou estampas de Cristos brancos, gritava: "Que diabo é isso? Ninguém sabe! Dizem que é Jesus. Essa é uma maldita mentira!"
Na época da luta pelos direitos civis, defensores do movimento Black Power e teólogos da libertação criticaram energicamente as imagens de figuras sagradas brancas. Um documento intitulado Declaração dos Clérigos Negros, de 1967, exigiu "a retirada de todas as imagens que sugerem que Deus é branco." Quando a violência racial se espalhou em Detroit, naquele ano, negros americanos pintaram de preto os rostos brancos dos ícones católicos.
Rejeição. Mais recentemente, a imagem da Santa Virgem Maria, do pintor nigeriano Chris Ofili, e o Piss Christ, do artista e fotógrafo nova-iorquino Andres Serrano, provocaram grande estardalhaço.
A imagem de Jesus crucificado de Serrano, mergulhada na urina do próprio artista, inspirou uma verdadeira cruzada contra a National Endowment for the Arts, no fim dos anos 80. O quadro de Ofili, que representa uma Madonna com a pele escura com fotografias de vaginas ao seu redor, enraiveceu o prefeito Rudolph Giuliani.
O prefeito, que afirmou equivocadamente que a imagem havia sido coberta com fezes de elefante, quando na realidade foram usadas na base para sustentar o quadro, tentou proibir que ela fosse exposta no Museu de Arte do Brooklyn, em 1999. Um cristão furioso passou tinta branca sobre o quadro.
As imagens do sagrado não causaram violência das massas nos EUA, mas provocaram intenso conflito. Nossa capacidade de defender uma cultura bastante saturada de reproduções do divino, em grande parte isentas de violência, só surgiu depois de uma maciça transformação tecnológica, de séculos de imigração e de movimentos sociais que obrigaram os americanos a aceitar as diferenças de raça, etnia e religião. TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
* EDWARD BLUM É PROFESSOR DE HISTÓRIA EM SAN DIEGO STATE UNIVERSITY E PAUL HARVEY É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DO COLORADO. AMBOS SÃO AUTORES DO LIVRO 'THE COLOR OF CHRIST: THE SON AND THE SAGA OF RACE IN AMERICA"
A confusão decorre, em parte, do fato de que, na cultura americana, as imagens sagradas se encontram em toda parte. Deus, Jesus, Moisés, Buda e outras figuras semelhantes aparecem em filmes, desenhos, igrejas e até mesmo nas paredes das salas de estar. Nós as estampamos nas camisetas, nos para-choques dos veículos e chegamos a tatuá-las na pele.
Entretanto, os americanos têm toda uma história de conflitos, alguns deles mortais, em razão da exposição do sagrado. O caminho para o debate civilizado sobre tais representações não é nem breve nem fácil.
Os EUA foram colonizados, em parte, por protestantes radicais iconoclastas da Grã-Bretanha, que consideravam a criação e o uso de imagens sagradas uma violação do segundo mandamento contra a representação de imagens.
Os colonos inimigos dos católicos, de Plymouth e de Massachusetts Bay, recusaram-se a colocar Jesus em suas igrejas e casas de oração e apagaram as cruzes dos livros. No início dos anos 1740, as autoridades britânicas invadiram uma comunidade indígena, no lado ocidental de Connecticut, para interrogar missionários morávios que possuiriam um livro que teria impressa "a imagem do nosso Salvador".
Os colonos temiam a infiltração de católicos do Canadá, controlado pelos britânicos. Pouco depois do episódio do Tea Party de Boston (a destruição do chá britânico pelos colonos), um pastor de Connecticut advertiu que, se os britânicos vencessem, tirariam as Bíblias dos colonos, que seriam obrigados a "orar para a Virgem Maria, adorar imagens, acreditar na doutrina do purgatório e na infalibilidade do papa".
Não eram apenas os protestantes que se opunham às imagens sagradas. No sudoeste do país, os índios da tribo pueblo, que combatiam os colonos espanhóis, não só queimavam e quebravam alguns crucifixos, mas até mesmo defecavam sobre eles.
No início da república, muitos americanos evitaram retratar Jesus ou Deus. O pintor Washington Alliston, falando em nome de muitos artistas, em 1810, disse: "Acho essa figura muito santa e sagrada para me sentir tentado a pegar no lápis". Um diplomata russo em visita à colônia, Pavel Svinin, ficou impressionado com a difusão de uma outra imagem: a de George Washington. "Todo americano acha seu dever sagrado ter um retrato de Washington em sua casa", escreveu. "Assim como nós temos as imagens dos santos de Deus."
Mudança. Somente no fim do século 19, as imagens de Deus e de Jesus tornaram-se comuns nas igrejas, nas escolas, nas Bíblias e nos lares. Diversos elementos influíram para tanto: as impressoras a vapor, os novos canais e as estradas que traziam uma variedade de crucifixos, imagens de Nossa Senhora e de santos.
Os protestantes começaram a produzir suas próprias imagens - frequentemente, para atrair as crianças - e, aos poucos, sentiram-se mais à vontade com imagens sagradas. No século 20, os EUA passaram a exportá-las, principalmente a Cabeça de Cristo, de autoria de Warner Sallman, de 1941, uma das mais reproduzidas no mundo inteiro.
No entanto, houve também alguma resistência. Quando Hollywood começou a retratar Jesus em filmes, um cristão fundamentalista revoltou-se: "O retrato da vida e dos sofrimentos do nosso Salvador, que fazem essas instituições, é uma forma de blasfêmia".
Vernon E. Jordan Jr., um negro americano que posteriormente se tornou presidente da National Urban League e foi assessor do presidente Bill Clinton, lembrou que, quando representou Jesus na época em que estudava na Universidade DePauw, em Indiana, nos anos 50, os espectadores brancos na plateia ficaram abismados.
Na realidade, a raça tem sido um motivo constante de conflito nos retratos americanos de Jesus. Na Filadélfia, nos anos 30, o pregador negro F. S. Cherry entrava nas igrejas negras e, apontando para pinturas ou estampas de Cristos brancos, gritava: "Que diabo é isso? Ninguém sabe! Dizem que é Jesus. Essa é uma maldita mentira!"
Na época da luta pelos direitos civis, defensores do movimento Black Power e teólogos da libertação criticaram energicamente as imagens de figuras sagradas brancas. Um documento intitulado Declaração dos Clérigos Negros, de 1967, exigiu "a retirada de todas as imagens que sugerem que Deus é branco." Quando a violência racial se espalhou em Detroit, naquele ano, negros americanos pintaram de preto os rostos brancos dos ícones católicos.
Rejeição. Mais recentemente, a imagem da Santa Virgem Maria, do pintor nigeriano Chris Ofili, e o Piss Christ, do artista e fotógrafo nova-iorquino Andres Serrano, provocaram grande estardalhaço.
A imagem de Jesus crucificado de Serrano, mergulhada na urina do próprio artista, inspirou uma verdadeira cruzada contra a National Endowment for the Arts, no fim dos anos 80. O quadro de Ofili, que representa uma Madonna com a pele escura com fotografias de vaginas ao seu redor, enraiveceu o prefeito Rudolph Giuliani.
O prefeito, que afirmou equivocadamente que a imagem havia sido coberta com fezes de elefante, quando na realidade foram usadas na base para sustentar o quadro, tentou proibir que ela fosse exposta no Museu de Arte do Brooklyn, em 1999. Um cristão furioso passou tinta branca sobre o quadro.
As imagens do sagrado não causaram violência das massas nos EUA, mas provocaram intenso conflito. Nossa capacidade de defender uma cultura bastante saturada de reproduções do divino, em grande parte isentas de violência, só surgiu depois de uma maciça transformação tecnológica, de séculos de imigração e de movimentos sociais que obrigaram os americanos a aceitar as diferenças de raça, etnia e religião. TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
* EDWARD BLUM É PROFESSOR DE HISTÓRIA EM SAN DIEGO STATE UNIVERSITY E PAUL HARVEY É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DO COLORADO. AMBOS SÃO AUTORES DO LIVRO 'THE COLOR OF CHRIST: THE SON AND THE SAGA OF RACE IN AMERICA"
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