O drama de estudantes – e famílias – afetados pelas cotas
Reserva de vagas a alunos da rede pública não afeta só a vida de beneficiados: altera também planos e sonhos de jovens – ricos e pobres – que disputam um lugar nas universidades federais, mas estudam em escolas privadas
Nathalia Goulart e Lecticia Maggi - VEJA
A família de Monique Silveira, de 15 anos, tem uma renda mensal de 3.000 reais. Graças a uma bolsa de estudos, a jovem cursa o 1º ano do ensino médio em uma escola privada no município de Formiga (MG), onde vive a família. Luciana, mãe de Monique, sempre viu a bolsa como uma chance de a filha escapar da má formação oferecida pelas escolas públicas locais e, assim, chegar a uma universidade federal. Desde o dia 29 de agosto, porém, o otimismo da família cedeu lugar à incerteza. Com a entrada em vigor da lei das cotas, que assegura metade das vagas de federais a egressos de escolas públicas, Monique viu os obstáculos rumo à universidade dobrarem. Como aluna de escola privada, ela só terá direito a disputar a metade das vagas restantes. "Não procurei uma escola particular para minha filha por disfrutar de uma vida confortável: foi a má qualidade da rede pública que me obrigou a buscar uma alternativa", diz Luciana. "Agora, Monique está sendo punida por isso."
A lei das cotas traz em si uma decisão temerária: estabelece que 120.000 das 240.000 vagas mantidas nas federais não serão mais ocupadas segundo o mérito acadêmico dos candidatos. Em sua face mais evidente, pretende beneficiar alunos que, sem o benefício, dificilmente chegariam às federais devido à má qualidade do ensino básico que recebem na rede pública – que, a cada ano, forma 7,1 milhões de jovens. Em sua face menos evidente, a lei toca a vida de outros milhares de estudantes e de suas famílias: alguns deles estão retratados nesta reportagem. A exemplo de Monique e Luciana, eles investiram dinheiro e forças num projeto de educação a longo prazo e agora veem o planejamento desmoronar com a nova regra. Entre esses brasileiros, há famílias de classe A, cujos filhos poderão eventualmente seguir para universidades privadas. Mas também há famílias de parcos recursos que usam tudo o que têm para manter os filhos em uma escola privada, numa tentativa de escapar do desastre do ensino público, além de pais e mães cujos rebentos conquistaram bolsas de estudos em unidades particulares, caso de Monique. Esses não terão o benefício da lei. Ao contrário.
Desde o início da vida escolar dos filhos, Suvi Alves controla o rendimento familiar de 5.000 reais para garantir a manutenção de Giovanna, de 18 anos, e Gabriel, de 16, em instituições privadas em São Paulo. Encontrou uma escola do tamanho do seu bolso: mensalidades de 400 reais para cada estudante. "Abri mão de viver com um certo conforto para que meus filhos pudessem estudar em uma escola melhor", diz Suvi. Giovanna sonha com uma vaga na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A novidade das cotas, porém, tornou tudo mais difícil aos olhos dela. Neste ano, das 121 vagas oferecidas no vestibular, 15 estarão reservadas a candidatos oriundos de escolas públicas. Se ela não entrar desta vez e tentar nova chance no futuro, enfrentará concorrência ainda maior. Em 2016, por exemplo, 60 lugares estarão reservados aos estudantes de unidades públicas, e a concorrência para alunos como Giovana aumentará muito. "Essa situação me deixa apreensiva, para dizer o mínimo", diz.
Apesar do revés imposto pelas cotas, Suvi diz que não se arrepende da decisão de manter os filhos na rede privada. Se tivesse de começar de novo, faria a mesma opção, pagando o mesmo preço. Rejeita, assim, a tese do governo de que as cotas trariam como subproduto a migração de parte dos alunos da rede privada para a pública, em busca do benefício. Uma vez na rede pública, segue o raciocínio do governo, as famílias dos estudantes recém-chegados pressionariam pela melhoria do sistema. É uma ideia a ser verificada. Mas já há especialistas a duvidar.
"O ensino médio público está falido, é uma fábrica de abandono. É questionável se famílias com condições de pagar por uma escola particular confiariam no sucesso dessa transferência", diz Maria Helena Guimarães, especialista em educação e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). "E ainda que houvesse tal migração de alunos, isso não provocaria um incremento expressivo da qualidade da educação: afinal, esses estudantes fariam a mudança motivados apenas pelo benefício da lei."
Já se sabe o efeito das cotas sobre o ensino superior: colocar alunos da rede pública nas federais. A lei, contudo, nada faz para aprimorar o ciclo médio, de onde saem os alunos que irão para aquelas universidades. Indicadores que constatam tal fragilidade não faltam. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), por exemplo, divulgado recentemente, apontou que a nota média dos alunos do nível médio da rede pública brasileira é de 3,4 pontos; entre os estudantes das unidades privadas que participaram da avaliação, a nota foi 5,7. Não está claro o que as cotas podem fazer para desfazer essa situação.
Família Seabra
Lucas e a mãe, Vivian: investimento alto em educação de qualidade e frustração (Ivan Pacheco)
Investir na educação dos filhos sempre foi prioridade para a funcionária pública Vivian Seabra, de 48 anos, e ela não poupou esforços nesse projeto. Colocou os gêmeos Lucas e Felipe, ambos de 20 anos, em um conceituado colégio de São Paulo. Em valores atuais, os doze anos do ensino básico saem por cerca de 250.000 reais por aluno. Lucas, disputa pela terceira vez uma vaga no curso de medicina. Ele já chegou a ser aprovado em uma faculdade particular, mas recusou-se a ingressar na instituição porque preferiu realizar novo vestibular para a faculdade federal, sinônimo de qualidade. A chegada da lei de cotas deixou o jovem revoltado. "Empenhei anos da minha formação estudando duro. A lei desequilibra a competição", diz. Vivian conta que toda a família tem acompanhado os esforços do garoto – e sofrido com ele. "Com esse novo sistema, parece que todo o sacrifício que fizemos não será reconhecido."
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