Olavo de CarvalhoNas minhas leituras de juventude, mais de quatro décadas atrás, poucas perguntas me impressionaram como aquela que dá título à segunda parte de La Rebelión de las Masas, de José Ortega y Gasset: “Quién manda en el mundo?”
O filósofo não a formulava em sentido metafísico, onde poderia ser
respondida por algo como “Deus”, “o acaso”, “a fatalidade”, mas em sentido
geopolítico, e chegava à conclusão de que era uma lástima a Europa ter perdido
seu posto de liderança, cedendo a vaga para a Rússia e os Estados Unidos.
A resposta parecia deslocada da pergunta. Estados, nações,
governos e continentes não mandam. Quem manda são os indivíduos e grupos que os
controlam. Antes da geo-política vem a política tout court. E
aí tudo se complica formidavelmente. É fácil perceber quais Estados ou países
predominam sobre os outros. Mas descobrir quem realmente manda num Estado ou
país – e através dele manda nos outros -- é um desafio intelectual mais
atemorizante do que o pode imaginar o analista político usual.
O verbo “mandar” vem do latim manus dare: quem manda
empresta os seus meios de ação (sua “mão”) para que outros realizem algo que ele
pensou. Um governante dá ordens a seus subordinados, mas, examinando bem, você
verá que só raríssimos governantes, na História – um Napoleão, um Stálin, um
Reagan –, foram eles próprios os criadores das idéias que realizaram. Os
primeiros teóricos do Estado moderno acertaram na mosca quando inventaram a
expressão “poder executivo”: em geral o homem de governo é o executor de idéias
que ele não concebeu nem teria a capacidade – ou o tempo -- de conceber. E os
que conceberam essas idéias foram os mesmos que deram a ele os meios de chegar
ao governo para realizá-las. Quem são eles?
Aplicando a pergunta ao caso específico dos Estados Unidos, o
sociólogo Charles Wright Mills, um dos mentores daNew Left, publicou em
1956 o livro que viria a se tornar um clássico: The Power Elite, “A
Elite do Poder”. A resposta que ele encontrou tomava a forma de uma trama
complicadíssima de grupos, famílias, empresas, serviços secretos oficiais e
extra-oficiais, seitas, clubes, igrejas e círculos de relacionamentos pessoais
ostensivos e discretos, incluindo amantes e call girls. A classe
política, que culminava na pessoa do governante nominal, aparecia aí como a
espuma na superfície de águas obscuras. Mills estava, obviamente, na pista
certa. Mas ele morreu em 1962 e não teve a ocasião de presenciar um fenômeno que
ele mesmo ajudou a produzir: a New Left tornou-se ela própria a elite
do poder e perdeu todo interesse em “transparência”. Ao contrário: esmerou-se na
opacidade ao ponto de colocar um completo desconhecido na presidência do país
mais poderoso do mundo e cercá-lo de um muro de proteção que bloqueia toda
tentativa de descobrir quem ele é, o que fez, com quem anda e que interesses
representa. Se você quer ter uma idéia do que anda fazendo a elite do poder nos
EUA, tem de buscar informação na outra ponta do espectro ideológico: os
conservadores são os atuais herdeiros da tradição de estudos inaugurada por
Wright Mills.
Graças a eles é que hoje a elite globalista fabiana, núcleo vivo
do poder por trás de praticamente todos os governos do Ocidente, se tornou
visível na sua composição e em detalhes do seu modus operandi ao ponto
da quase obscenidade, tornando involuntariamente cômica a insistência de alguns
em chamá-la de “poder secreto”. Clique no Google as expressões “Council on
Foreign Relations”, “Bilderberg”, “Trilateral” e similares, e obterá mais
informações do que seus neurônios poderão processar pelos próximos dez anos --
informações cujo nível de credibilidade varia desde a prova científica até a
rematada invencionice.
Em compensação, pouco ou quase nada se sabe das fontes profundas
do poder na Rússia, na China e nos países islâmicos. Mesmo as descrições que
temos da classe dirigente visível nessas regiões do globo são esquemáticas e
superficiais, sem comparação possível com o meticuloso Who’s Who da
elite ocidental. Isso explica-se facilmente pela diferença de acesso às fontes
de informação. Uma coisa é pesquisar em arquivos e bibliotecas ocidentais, sob a
proteção das leis e instituições democráticas, podendo até, nos EUA, furar a
barreira da má-vontade oficial por meio do Freedom of Information Act.
Coisa totalmente diversa é tentar adivinhar o que se passa por trás das muralhas
impenetráveis do establishment russo-chinês.
Nem a KGB nem os serviços secretos da China jamais deram acesso a
pesquisadores independentes. Mesmo os arquivos do Partido Comunista da URSS
voltaram a fechar-se após um breve período de tolerância, motivado não por algum
súbito amor à liberdade, mas pela convicção ilusória, logo desmentida, de que os
pesquisadores ocidentais eram majoritariamente simpáticos ao regime
soviético.
No mundo islâmico, por baixo da classe dirigente e da barafunda de grupos
terroristas estende-se uma rede inabarcável de organizações esotéricas, algumas
milenares, cujo poder de influência é enormemente variado de país para país e de
época para época. Essas organizações, que constituem o núcleo espiritual do
Islam, a garantia profunda da sua unidade civilizacional e, a longo prazo, a
condição de possibilidade da expansão islâmica mundial, continuam perfeitamente
desconhecidas pelos analistas políticos ocidentais, jornalísticos ou mesmo
acadêmicos.
A diferença de visibilidade entre os grandes esquemas globalistas em
disputa é fonte de erros catastróficos na descrição do conflito de poder no
mundo. Em artigos vindouros explicarei alguns desses erros.
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