Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
NOVA YORK - Primeiro foi o Halloween. A festa na véspera do dia de todos os
santos, que não tem nada a ver conosco, só desembarcou nos Estados Unidos com os
imigrantes escoceses e irlandeses, no século 19, e tem origem pagã. Assim como
faziam na Europa, os imigrantes trouxeram para a noite do Halloween a tradição
do trick or treat (um truque ou um regalo), em que crianças fantasiadas batem de
porta em porta, anunciando a falsa ameaça de aprontar uma se o morador não der
balas, doces ou até uns trocados.
Com o índice de crime nas nossas cidades, imagino a espontaneidade dessa tradição importada sem o menor vínculo com a nossa cultura popular, produto do novo consumismo. Parabéns à cidade paulista de São Luís do Paraitinga, que enfrentou essa jequice emergente decretando 31 de outubro o Dia do Saci Pererê, este sim, superior em traquinagem a qualquer personagem inventado pelo comércio americano.
A mortalha da minha juventude era fantasia para seguir o trio elétrico no carnaval de Salvador. Se você já dançou atrás de um trio elétrico na Ladeira da Barra, a parada de Halloween do Greenwich Village, em Nova York, é um tédio só. O país do carnaval mais rabelaisiano do planeta precisa da Halloween como eu preciso de uma bolsa Vuitton de plástico comprada no camelô da Canal Street.
O nosso estimado Tutty Vasquez falava sério quando apontou para o ridículo da Sexta-Feira Negra, objeto de troça até dos jornais econômicos como o Financial Times.
Pode haver coisa mais jeca? O comércio brasileiro não tem imaginação para criar uma liquidação não inspirada num feriado que não comemoramos? Para começo de conversa, o black, o negro se refere a sair do vermelho o que, no Brasil, é ficar no azul. E os descontos eram risíveis ou inexistentes, num sinal de desprezo pela inteligência do consumidor. Em poucas horas, o slogan da Black Friday tupiniquim se espalhou on-line: Tudo pela metade do dobro do preço.
Já que estamos com essa voracidade importadora, sugiro importar o espírito e não o menu do feriado que precede a Black Friday. O Thanksgiving, o Dia de Ação de Graças americano, sempre na terceira quinta-feira de novembro, se refere à tradição de uma suposta ceia de 1621, depois de uma boa colheita celebrada pelos pioneiros que se assentaram em Massachusetts. A peça central do menu é o peru, que meu pai chamava, com razão, de o chuchu animal.
O espírito do Thanksgiving este ano, nesta região, onde dezenas de milhares de pessoas continuam desabrigadas pelo furacão Sandy, merece ser exportado. Mal as águas começaram a baixar em Nova York e Nova Jersey, pipocou on-line, cortesia do Occuppy Wall Street, o Occuppy Sandy. O movimento Occupy, objeto de chacota triunfalista da imprensa que cobre o mundo sem levantar do sofá, tem servido uma média de 10 mil refeições por dia, num show de organização que desperta elogios de veteranos como funcionários da Cruz Vermelha. O Occupy está atarefado também agora com outro projeto, digno de detentores de MBA's com o coração no lugar certo. Está comprando a dívida de bancos por centavos do dólar, dívida esta que os bancos vendem com o mesmo prejuízo a agências de coleta, mas se recusam a perdoar. As agências passam a infernizar os devedores. O Occupy levanta fundos on-line, compra a dívida e perdoa o devedor, numa inversão da ordem financeira que desaguou no crash de 2008.
Outros grupos se formaram espontaneamente, depois do furacão, não só para recolher doações e servir refeições, como também levar crianças, cujas escolas foram destruídas, a salas de aula mais distantes. No dia do Thanksgiving, o feriado mais importante do ano para os americanos, havia fila de espera em alguns pontos em Nova York - mais voluntários do que vagas para acomodá-los.
Se o prazer reside em comprar tradição, o que pode ser mais griffe do que comprar um ingresso para uma noite no Carnegie Hall, uma das grandes salas de concerto do mundo? É o meu programa depois de amanhã. Quando o anúncio do teatro descreve a atração como "um ícone de elegância e originalidade", não tem erro. Mas quem precisa conferir o carimbo de aprovação americano para passar duas horas ouvindo o sublime Paulinho da Viola?
Com o índice de crime nas nossas cidades, imagino a espontaneidade dessa tradição importada sem o menor vínculo com a nossa cultura popular, produto do novo consumismo. Parabéns à cidade paulista de São Luís do Paraitinga, que enfrentou essa jequice emergente decretando 31 de outubro o Dia do Saci Pererê, este sim, superior em traquinagem a qualquer personagem inventado pelo comércio americano.
A mortalha da minha juventude era fantasia para seguir o trio elétrico no carnaval de Salvador. Se você já dançou atrás de um trio elétrico na Ladeira da Barra, a parada de Halloween do Greenwich Village, em Nova York, é um tédio só. O país do carnaval mais rabelaisiano do planeta precisa da Halloween como eu preciso de uma bolsa Vuitton de plástico comprada no camelô da Canal Street.
O nosso estimado Tutty Vasquez falava sério quando apontou para o ridículo da Sexta-Feira Negra, objeto de troça até dos jornais econômicos como o Financial Times.
Pode haver coisa mais jeca? O comércio brasileiro não tem imaginação para criar uma liquidação não inspirada num feriado que não comemoramos? Para começo de conversa, o black, o negro se refere a sair do vermelho o que, no Brasil, é ficar no azul. E os descontos eram risíveis ou inexistentes, num sinal de desprezo pela inteligência do consumidor. Em poucas horas, o slogan da Black Friday tupiniquim se espalhou on-line: Tudo pela metade do dobro do preço.
Já que estamos com essa voracidade importadora, sugiro importar o espírito e não o menu do feriado que precede a Black Friday. O Thanksgiving, o Dia de Ação de Graças americano, sempre na terceira quinta-feira de novembro, se refere à tradição de uma suposta ceia de 1621, depois de uma boa colheita celebrada pelos pioneiros que se assentaram em Massachusetts. A peça central do menu é o peru, que meu pai chamava, com razão, de o chuchu animal.
O espírito do Thanksgiving este ano, nesta região, onde dezenas de milhares de pessoas continuam desabrigadas pelo furacão Sandy, merece ser exportado. Mal as águas começaram a baixar em Nova York e Nova Jersey, pipocou on-line, cortesia do Occuppy Wall Street, o Occuppy Sandy. O movimento Occupy, objeto de chacota triunfalista da imprensa que cobre o mundo sem levantar do sofá, tem servido uma média de 10 mil refeições por dia, num show de organização que desperta elogios de veteranos como funcionários da Cruz Vermelha. O Occupy está atarefado também agora com outro projeto, digno de detentores de MBA's com o coração no lugar certo. Está comprando a dívida de bancos por centavos do dólar, dívida esta que os bancos vendem com o mesmo prejuízo a agências de coleta, mas se recusam a perdoar. As agências passam a infernizar os devedores. O Occupy levanta fundos on-line, compra a dívida e perdoa o devedor, numa inversão da ordem financeira que desaguou no crash de 2008.
Outros grupos se formaram espontaneamente, depois do furacão, não só para recolher doações e servir refeições, como também levar crianças, cujas escolas foram destruídas, a salas de aula mais distantes. No dia do Thanksgiving, o feriado mais importante do ano para os americanos, havia fila de espera em alguns pontos em Nova York - mais voluntários do que vagas para acomodá-los.
Se o prazer reside em comprar tradição, o que pode ser mais griffe do que comprar um ingresso para uma noite no Carnegie Hall, uma das grandes salas de concerto do mundo? É o meu programa depois de amanhã. Quando o anúncio do teatro descreve a atração como "um ícone de elegância e originalidade", não tem erro. Mas quem precisa conferir o carimbo de aprovação americano para passar duas horas ouvindo o sublime Paulinho da Viola?
Nenhum comentário:
Postar um comentário