terça-feira, 2 de agosto de 2016

Crianças-soldados do EI praticam decapitação com bonecas e aprendem guerra santa em app
Katrin Kuntz - Der Spiegel
Reprodução/Youtube
Em uma tenda num campo de refugiados em Dohuk, no sopé de montanhas amareladas, Amir e Ahmed, 15 e 16, desenrolam seus colchonetes no chão para esquecer as terríveis lembranças. É uma noite fria de outono; eles se apoiam em almofadas e ligam a TV. Os irmãos fugiram do cativeiro do Estado Islâmico (EI) há seis meses. Agora, tudo o que querem é assistir desenhos animados.
Os dois percorrem os canais. O EI também tem um canal de propaganda, que os espectadores podem sintonizar com facilidade na região curda do norte do Iraque. Ahmed, que segura o controle remoto, de repente avisa: "Olhe, Amir, somos nós! Somos nós!" Os irmãos se reconhecem na tela: com roupas pretas, os rostos mascarados, junto de outras crianças-soldados, durante o treinamento de combate em Mosul.
Agora é primavera, e aquela noite passada na frente da televisão foi há alguns meses atrás. Ahmed e Amir, sentados lado a lado, falam sobre o assunto na mesma tenda pequena no acampamento. Ahmed, o mais velho, fala com voz rouca sobre o tempo que passaram com o EI, enquanto Amir olha para o chão.
"Eles nos deram drogas e, depois disso, nós acreditamos em tudo" Ahmed e Amir
Eles foram mantidos reféns pelo EI durante nove meses, presos em um campo militar em Mosul, o baluarte do EI no Iraque. Lá, a organização terrorista usou surras e armas para treiná-los para se tornarem crianças-soldados, ou "filhotes de leão do califado", como eles dizem. Os "filhotes de leão" se explodem para matar supostos infiéis. Eles presenciam decapitações para aprender como são feitas. Eles doam sangue para os combatentes feridos. E denunciam traidores.
É difícil determinar quantas crianças-soldados o EI está treinando. Especialistas calculam que cerca de 1.500 meninos estejam servindo ao grupo terrorista no Iraque e na Síria. Alguns são filhos de militantes. Na verdade, mais de 31 mil mulheres estão grávidas atualmente em território sob o poder do EI. Outras crianças chegam com seus pais do exterior quando os pais se unem ao movimento jihadista. Em muitos casos, os "filhotes de leão" também são filhos de combatentes locais ou órfãos que entram para o EI voluntariamente. Outros, como Ahmed e Amir, são raptados.
Os irmãos cresceram em uma aldeia na região de Sinjar. Eles levavam uma vida boa, segundo dizem, jogando futebol, subindo nas montanhas e apanhando galinhas, até que o EI atacou sua aldeia, em agosto de 2014. Os homens entraram na aldeia em caminhonetes, ameaçando os moradores até que estes fugiram apavorados --mas era tarde demais. Eles puxaram os irmãos para um veículo e os levaram a um ponto de coleta em Tall Afar, onde foi decidido como eles seriam usados.
O EI dividiu os meninos em dois grupos. Os mais jovens e mais fracos ficariam na escola para aprender o Corão. Os mais velhos seriam enviados diretamente para o treinamento militar em Mosul. Ahmed e Amir foram levados a um campo de treinamento com 200 crianças. O EI queria que eles esquecessem que são iazidis (minoria étnica curda). Eles dizem que ficaram calados, com medo de falar qualquer coisa.
Desde que o EI começou a perder território na Síria e no Iraque, devido às crescentes operações militares, a organização terrorista incrementou seus esforços de propaganda destinados a crianças. Pesquisadores da Fundação Quilliam, um grupo de pensadores britânico que analisa a propaganda do EI, descobriram que, em 2015, um número significativamente maior de crianças foi usado para promover a organização na mídia. Os atos de brutalidade cometidos por crianças também aumentaram: um número cada vez maior de documentos mostra crianças que serviam ou pareciam servir como carrascos do EI. Foi uma tentativa de demonstrar resistência contra os ataques aéreos na Síria, segundo Nikita Malik, que conduziu o estudo.
Ao exibir crianças, diz ele, o EI quis mostrar que está relativamente inabalado pelas bombas. A mensagem do EI, explica ele, é esta: "Não importa o que vocês façam, estamos criando uma geração radicalizada aqui". No sistema, segundo Malik, a tarefa das crianças é disseminar a ideologia do EI em longo prazo e infiltrar-se na sociedade de maneira tão profunda e duradoura que continuará havendo seguidores, mesmo que se perca território.
De manhã, antes de o sol nascer, Ahmed e Amir rezavam. Depois aprendiam as técnicas básicas de uma criança-soldado: desmontar uma AK-47, montar um dispositivo explosivo, detonar um colete explosivo. O EI os surrava com paus e os chutava na barriga para torná-los mais duros, como dizem os homens. À noite, os irmãos se deitavam em colchões cheios de pulgas. Seus corpos pareciam mortos, segundo eles. Seus pensamentos giravam em torno de seus pais, que tinham visto pela última vez acenando para eles enquanto o EI os levava numa caminhonete.
O EI lhes deu trajes pretos afegãos e os levou para a frente de combate, diz Ahmed. Queriam que eles vissem seus inimigos: o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), os iazidis, os peshmerga curdos (membros do Exército). Em certa ocasião, um militar decapitou um iazidi diante deles. "Nós também vamos matá-los se não se converterem", os homens lhes diziam. Foi nessa época que Amir, o mais dócil dos irmãos, parou de falar.

Pílulas e fuga

O EI também lhes dava comprimidos, que de início eles não queriam engolir. Mas então perceberam que os adultos, depois de tomá-los, pareciam mais confiantes. "Quando tomávamos as pílulas, tudo mudava", diz Amir. O medo desaparecia, assim como a sensação de punhaladas no coração. Os irmãos começaram a acreditar que os iazidis eram inferiores.
Toda noite, depois do treinamento, Ahmed escapava para arbustos que havia atrás do dormitório. Lá ele tinha escondido um telefone celular, no chão embaixo de uns galhos, que usava para enviar mensagens a sua mãe: "Olá, mamãe, estamos vivos", ou "Estou com saudade".
Quando um guarda o apanhou certa noite com o telefone proibido, diz ele, o homem o arrastou até uma sala, arrancou sua camisa e lhe bateu 250 vezes com a parte de madeira de um cano de água, quebrando o esterno de Ahmed. O osso se solidificou torto e hoje se projeta de sua camiseta como um furúnculo, marca que o fará recordar os malefícios do EI pelo resto da vida. Seus olhos começam a brilhar quando ele conta sobre o incidente.
Afinal eles reuniram coragem para fugir do acampamento. Com outras duas crianças, correram à noite, quando os guardas não prestavam atenção. Viajaram durante nove dias, até que encontraram alguns rebeldes peshmerga. Dormiam sob arbustos durante o dia e tinham muito pouca água. Um dos meninos do grupo já havia tentado fugir uma vez. Os militantes do EI esmagaram seu pé com a coronha de um rifle, e agora os outros meninos tinham de carregá-lo na maior parte do caminho.
O ex-ditador iraquiano Saddam Hussein também usava crianças como soldados. A partir de meados dos anos 1990, foram construídos no Iraque campos militares de verão para milhares de meninos. O regime tentou militarizá-los para conseguir melhor acesso à sociedade. A unidade de crianças-soldados que se formou depois da guerra Irã-Iraque se chamava Filhotes de Leão de Saddam. Estima-se que vários milhares de crianças lutaram na guerra do Iraque em 2003. O EI mais tarde adotou o termo, assim como os elementos básicos do programa de treinamento dos meninos de Saddam.
No campo, uma pequena multidão se reúne na entrada da tenda onde Ahmed e Amir estão contando sua história. Sua mãe, sentada com eles, quer que seus filhos sejam crianças novamente. Ela lhes traz água quando eles choram à noite. Pousa delicadamente a mão sobre suas bocas quando eles recitam o Corão. E espera que com o passar do tempo as vozes das pessoas torturadas possam sumir da cabeça de seus filhos.
O recrutamento de crianças ocorre em várias fases, começando com a sociabilização inofensiva. O Estado Islâmico realiza eventos em que as crianças ganham doces e os meninos podem segurar uma bandeira do EI. Depois lhes mostram vídeos cheios de violência. Mais tarde, nas escolas gratuitas que o movimento usa para se promover, eles aprendem conhecimentos islâmicos e praticam contas e aritmética com livros que usam imagens de tanques. Praticam decapitação com bonecas louras vestidas em macacões cor-de-laranja. Com um novo app desenvolvido pelo EI, eles aprendem canções que incitam as pessoas a participar da jihad.
Nas áreas controladas pelo EI, não há alternativa a essas escolas. São pontos de coleta das crianças que o EI escolhe para seus campos militares. Olheiros visitam essas classes e determinam quais alunos se tornarão "filhotes de leão". Depois que as crianças são apanhadas pelo sistema, é difícil que se livrem deles.

Se forem bons, verão suas mães

Há três dias Wahad, 11 anos, conseguiu escapar de uma escola corânica do EI em Tall Afar. Agora ele está sentado em uma cadeira no escritório de uma organização de ajuda em Dohuk. É um menino magro de olhos azuis, ruivo e sardento. Seu tio Idriz, um homem imponente com um grosso bigode, o trouxe para cá. Ele também quase perdeu a vida com o EI.
Há muito pouco apoio para as crianças-soldados que conseguem escapar. Mirza Dinnayi, um funcionário da Iraq Air Bridge [Ponte Aérea Iraquiana], coleta os dados na esperança de que um dia seja criado um projeto de ajuda a elas. "Mas no momento as autoridades já têm muito para cuidar com as mulheres estupradas pelo EI", diz ele. No entanto, registra a história de Wahad.
Dinnayi tem uma folha de perguntas que quer que Wahad responda. Mas o menino mal pode se concentrar. Não consegue parar de pensar em um determinado verso do Corão. Dinnayi quer saber até onde o EI conseguiu atrair Wahad para seu lado e em que medida ele foi convertido.
"Você fala árabe?", pergunta ele em um tom amigável e atencioso.
"Não", diz Wahad.
"Que língua você fala?"
"Curdo", responde o menino.
"E como você lê o Corão, que é em árabe?" Wahad fica em silêncio.
"Você é muçulmano ou iazidi?"
Wahad olha para o chão, o rosto vermelho de vergonha. "Iazidi", diz, praticamente em um sussurro. Ele mal pode suportar a ideia de ter traído os iazidis e de estar no lado errado.
Wahad também ficou em frente à escola em Tall Afar quando o EI escolheu seus reféns. Ele foi um dos fracos que foi enviado à escola religiosa. O EI trancou-o com outros 34 meninos em uma sala vazia que se tornou sua prisão durante 20 meses. Toda manhã antes de o sol nascer, uma professora do EI ia acordá-los para rezar. Depois, eles estudavam o Corão durante sete horas. Para incentivá-los a se aplicar, prometiam-lhes, como se estivessem num conto de fadas: "Se vocês forem bons, poderão ver suas mães".
Wahad não se tornou um soldado e não lutou, mas ficou tão traumatizado que quase não fala mais. Psicólogos do centro de saúde mental em Dohuk trabalham com crianças como ele, "a menos que os próprios pais estejam traumatizados demais para trazê-las", explica o psiquiatra Thikra Ahmed Muhammed em uma sala de jogos colorida. Antes eram as crianças traumatizadas por acidentes de carro ou que molhavam a cama que recebiam terapia. Agora muitos dos pacientes têmdepressão, e alguns, até com menos de 10 anos, tentaram cometer suicídio.
Um menino de 4 anos, explica o psiquiatra, experimenta as coisas que ele viu em sua irmã de 6: apagar cigarros no braço ou amarrar uma corda no pescoço. Um menino de 5 anos acorda sua mãe no escuro e diz: "Você precisa rezar". Muhammed pinta imagens com as crianças. Elas muitas vezes desenham a si mesmas, com olhos arregalados e bocas pequenas.
À noite, Wahad está parado diante de um dos prédios de apartamentos em Dohuk onde ele e seu tio estão hospedados. Wahad vê as crianças do bairro brincando com bolinhas de gude, mas ele fica olhando para o horizonte. Seu tio Idriz, sentado ao seu lado em um banco, conta que o EI matou uma criança que tentou escapar e atirou o corpo no meio das outras crianças. Wahad quase não fala, mas quando o faz sua voz parece a de um passarinho.
Seu tio também não esquece as imagens do passado. Quando o EI atacou a aldeia, ele e outros iazidis foram obrigados a se deitar no chão em fila. Os militantes do EI percorreram a fila e mataram a tiros 380 homens, mas erraram Idriz. Ele se fingiu de morto e sobreviveu depois que nômades o encontraram, alimentando-o com tomates e fígado cru.
É difícil para Idriz aceitar que Wahad se tornou uma criança silenciosa, e que Wahad provavelmente não poderá enfrentar os horrores tão bem quanto ele. Mas Idriz faz o possível. Aproxima-se das crianças que brincam, põe a mão sobre o ombro de Wahad e massageia seu pescoço.
"Vou levá-lo ao parque amanhã", diz. "Você verá a vida normal lá. Vou deixá-lo forte, Wahad." Idriz lhe dá um leve empurrão. Wahad, parecendo envergonhado, pega algumas bolinhas, olha para o tio, encosta a cabeça na barriga dele e diz: "Sim, forte como um guerreiro".
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

Nenhum comentário: