Novo marco de defesa da responsabilidade fiscal
As instituições republicanas foram testadas com êxito na cassação de Collor, mas com Dilma o desafio é maior, porque, entre outras razões, os crimes são maiores
O Globo
A aprovação pelo plenário do Senado da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff pode ser vista de vários ângulos relevantes. Um deles, o fato de o Brasil, no mais longo período ininterrupto de estabilidade institucional da sua história republicana, enfrentar, dentro da lei, dois afastamentos de presidentes eleitos pelo voto direto; de Collor, em 92, e este, de Dilma, ainda a ser confirmado em julgamento final. A norma no continente é outra, de golpes com a participação de militares, como aconteceu no Brasil desde a própria proclamação da República, em 1889.
Dos dois, o teste mais duro para as instituições tem sido o impeachment de Dilma, relacionado de alguma forma ao desmonte da “organização criminosa” criada pelo lulopetismo para desviar dinheiro público de estatais, a fim de financiar o projeto de poder do PT e de aliados. Soube-se depois que o mensalão (Banco do Brasil) e o petrolão (Petrobras e subsidiárias, com ramificações no setor elétrico, pelo que se sabe até agora) transcorreram de forma simultânea, sob o controle da cúpula do partido que subiu a rampa do Planalto com Lula, em 2003. Há pouco, o Ministério Público Federal, ao denunciar Lula ao Supremo, no caso do sítio de Atibaia e do tríplex de Guarujá, registrou que, pela lógica, o ex-presidente deve ter participado da organização.
O pedido de impeachment de Dilma não se relaciona, formalmente, às descobertas da Operação Lava-Jato, mas, por ser o julgamento do impedimento também político, é certo que o conjunto da obra de malfeitorias que a força-tarefa de policiais federais, procuradores e fiscais da Receita que atuam junto ao juiz Sérgio Moro, em Curitiba, descobriu ajudou a tramitação do processo até aqui, na fase final.
Um aspecto do impeachment de Dilma, inexistente na defenestração de Collor, esta devido à corrupção, é ele estar lastreado em crimes contra o Orçamento, relacionados à afronta ao princípio, usualmente seguido em sociedades mais avançadas, do equilíbrio das contas públicas. A corrupção, casos bilionários e disseminados em estatais importantes, supera de longe as falcatruas de PC Farias, tesoureiro e sócio de Collor. Os casos ajudam a compor o conjunto da obra que depõe contra Dilma, Lula, PT e companheiros, mas, tecnicamente, as provas que levaram o Congresso a ter afastado Dilma por até 180 dias se referem ao desrespeito flagrante à Lei de Responsabilidade Fiscal e a normas orçamentárias.
Na visão ideológica tosca de mundo das frações de esquerda que compõem o PT, equilíbrio fiscal é conceito conservador, “neoliberal”. Compartilham uma visão primária do keynesianismo, pela qual o Estado sempre precisará ter déficits para debelar recessões. Chamam de políticas “anticíclicas”. Não admitem que desequilíbrios orçamentários estruturais, como os que ajudaram a criar na economia brasileira — pela vinculação de mais de 90% do Orçamento e indexação da maior parte das despesas sociais pelo salário mínimo e inflação —, destruíram a capacidade de o Estado investir e sinalizaram para a insolvência da dívida pública, pois criaram uma dinâmica de crescimento exponencial dela em relação ao PIB. Assim, também afastaram os investidores privados. E tornaram a depressão uma possibilidade real.
Por esta visão sectária, sob a clara inspiração de Dilma, ministra-chefe da Casa Civil durante todo o Lula 2, o governo aproveitou a crise mundial, a partir do final de 2008, para começar a construir o tal “novo marco macroeconômico”, com as velhas teses dessas esquerdas, já defendidas no antigo PT: o Estado como principal agente na sociedade, indutor do desenvolvimento, distribuidor de incentivos fiscais e creditícios, e sôfrego coletor de impostos etc.
Precisavam, porém, burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000 contra o voto do PT, e a legislação orçamentária. Por conveniência, dentro da velha norma dos “fins que justificam os meios” — a mesma que avalizou desfalques e assaltos a companhias públicas; o “meio”, para se atingir o “fim”, a perpetuação no poder —, Lula e companheiros assinaram a Carta ao Povo Brasileiro, na campanha de 2002, e mantiveram pilares da política de estabilização econômica herdada do Plano Real. Deu certo, e, ajudado pelo ciclo histórico de alta das cotações de commodities, Lula livrou-se do risco de impeachment no mensalão, foi reeleito e sua popularidade não parou de subir.
Mas os cacoetes ideológicos foram mais fortes. Arrogantes, começam a adotar velhas políticas que já não haviam dado certo no próprio Brasil — aplicadas pelos militares da direita nacionalista — e, nisso, cometeram ilegalidades fiscais.
Principalmente Dilma, em cuja parte final de mandato aprofundou o “novo marco”, maquiou contas públicas, com o uso abundante de técnicas de “contabilidade criativa” do seu secretário do Tesouro, Arno Augustin, com a no mínimo complacência do superior hierárquico, o ministro da Fazenda Guido Mantega. O parque de ruínas fiscais de Dilma, Lula e PT é extenso. Mas a debacle veio com operações malandras de maquiagem de gastos e escamoteamento de dívida pública, forçando o BB, a Caixa, o BNDES, entre outros, a financiar o Tesouro, pagando, no lugar dele, despesas com o Bolsa Família, subsídios variados como no Minha Casa Minha Vida, no financiamento agrícola, no crédito a empresas etc.
A defesa de Dilma, pelo advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, e a bancada do PT minimizam, alegam que governos anteriores fizeram o mesmo. Mas não na enorme proporção de Dilma, em que fica configurada uma política deliberada de forçar estes empréstimos para esconder déficits do Tesouro. Dados do Banco Central mostram que, nos governos FH e na primeira gestão de Lula, estes saldos eram residuais. Com Dilma, mas já a partir do segundo mandato de Lula, chegaram a passar dos R$ 50 bilhões ou 1% do PIB. Ela quebrou o Tesouro na campanha de 2014 e continuou a aprofundar o rombo em 2015, legalizado contabilmente porque transformaram a meta de superávit em déficit em dezembro, outra mágica contábil, ajudada pelo amplo apoio que ainda contavam no Congresso.
Atropelada a LRF, o governo Dilma, também já em 2015, editou decretos, sem aprovação do Congresso, com autorização de novas despesas. Um ato monárquico, ou stalinista, de desprezo pela República. Alterar posteriormente metas orçamentárias para encobrir o delito cometido não faz desaparecer o crime.
A cassação de Collor, o primeiro presidente eleito pelo povo depois de uma ditadura militar de 21 anos, foi uma afirmação do estado democrático de direito. A abertura do processo contra Dilma é uma consolidação do princípio civilizatório da responsabilidade fiscal.
Depois de 26 anos de aprovada a LRF, tantas vezes desrespeitada pelo lulopetismo, a República brasileira, por meio de suas instituições, reage e alerta que contas equilibradas, inflação baixa e sob controle se tornaram um patrimônio da sociedade, defendido pela Constituição e por leis específicas. Afrontá-lo pode custar até mesmo mandato presidencial.
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