Christophe Ayad - Le Monde
Mandel Ngan/ AFP
Barack Obama e Vladimir Putin se cumprimentam antes de reunião da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, em setembro
O pôquer é um jogo americano, ao passo que o xadrez é um esporte russo. Mas hoje o campeão mundial de pôquer é um russo, enquanto o mestre internacional do xadrez é um americano. Os dirigentes das duas maiores potências militares do mundo não jogam o mesmo jogo nem seguem as mesmas regras, e é isso que torna tão difícil a interpretação do que está se passando neste momento na Síria, mas também em escala mundial.
Desde que assumiu o poder no início dos anos 2000, Vladimir Putin vem continuamente tentando restaurar a potência russa no lugar da extinta União Soviética, impotente e "humilhada" —pelo menos do seu ponto de vista— ao longo dos anos 1990.
E essa restauração envolve
recriar uma relação de forças com os Estados Unidos, multiplicando as
fontes de tensão. Após a demonstração de força na Geórgia no verão de
2008, Vladimir Putin passou para uma fase de ação resoluta e audaciosa
desde que voltou ao poder em 2012. Primeiro na Ucrânia, onde o
presidente russo anexou a Crimeia em poucas semanas, na primavera de
2014, e depois favoreceu o surgimento de uma insurreição separatista
armada na região da bacia do Donetsk, que até hoje tem paralisado o
desenvolvimento do país.
E será que tudo isso teria sido possível sem que Barack Obama desistisse, no final de agosto de 2013, de uma campanha de bombardeios punitivos contra o regime sírio, que havia acabado de ultrapassar a "linha vermelha" estabelecida por Washington ao usar a arma química contra sua própria população? Provavelmente não.
Sendo assim, o fato de a Rússia ter entrado em cena na Síria a partir de 30 de setembro é ao mesmo tempo consequência e exemplificação da perda de liderança no Oriente Médio.
Então de um lado teríamos Vladimir Putin, conduzindo a dança e restabelecendo seu protegido, Bashar al-Assad, e ditando o ritmo militar e diplomático. De outro, um Barack Obama dividido pelos acontecimentos, incapaz de usar a força, sem crédito junto a seus próprios aliados, como a Turquia, a Arábia Saudita e mesmo a França, e disposto a se deixar levar pelo Irã.
Mas as coisas não parecem tão simples assim. É verdade que Putin, engajado em uma eterna política de "reviravoltas", coleciona sucessos táticos. Mas será que ele possui somente uma estratégia? A devolução da Crimeia? Uma operação soberba na visão da opinião pública russa, inútil do ponto de vista estratégico —havia uma garantia de que a frota russa ficaria em Sebastopol por 30 anos ao final de um acordo em 2010— e sobretudo muito cara (US$20 bilhões ou R$77 bilhões, segundo um estudo do Observatório Franco-Russo citado pelo "L'Opinion").
Em compensação, a desestabilização da Ucrânia levou a sanções europeias e americanas que, somadas à queda do preço do petróleo, mergulharam a economia russa em uma profunda recessão.
Ao intervir hoje na Síria ao lado do Irã, Moscou se alienou dos dois piores inimigos do regime de Assad, a Arábia Saudita e a Turquia. Só que a primeira continua sendo o árbitro dos preços mundiais do petróleo, do qual a Rússia depende de maneira vital, e a segunda ocupa uma posição nevrálgica no trajeto de South Stream, projeto de gasoduto russo que contorna a Ucrânia pelo sul.
Por fim, ao endossar o papel de xerife do Oriente Médio, que apesar de prestigioso acaba sendo terrível e impossível, Putin livra os Estados Unidos de um fardo que Obama não quer mais desde os fiascos no Iraque e no Afeganistão. De que serve o poder se não há recursos?
Putin restaurou o prestígio do Exército e da diplomacia russas, mas ele deixará um país sem outras riquezas além de suas matérias-primas, sem uma sociedade civil ou instituições sólidas e de demografia declinante. Um país cujo principal trunfo continua sendo seu poder de entrave. Só que o pôquer é um jogo onde se deve apostar cada vez mais alto para continuar tendo credibilidade.
Já Obama nunca se viu como presidente do mundo, somente como o dos Estados Unidos —ao contrário dos ingênuos de Oslo que lhe concederam precipitadamente o prêmio Nobel da Paz de 2009. Ele é um animal de sangue frio, calculista e sem sentimentos, como os sírios bem sabem: seu abandono cínico em 2013, sua recusa obstinada em entregar armas antiaéreas para prevenir as devastadoras bombas-barris custaram dezenas de milhares de vidas sírias, que entrarão para sua conta nos livros de História.
Talvez Obama não tenha muito senso moral ou brio, mas ele tem uma estratégia, sem dúvida nenhuma. Isso se traduz na prática por uma política pouco notável, que consiste em não intervir, ou intervir o mínimo possível, fazer com que mude a relação de forças, e trabalhar a longo prazo.
No Oriente Médio, restarão duas coisas de seus oito anos de mandato: o fim da dependência do petróleo da Arábia Saudita, graças a uma política que incentiva a exploração do petróleo de xisto, e o acordo nuclear com o Irã, ainda que para isso tenha de se alienar de Israel e da Arábia Saudita (ainda mais).
Ao agir dessa forma, o presidente americano respondeu ao principal desafio americano do pós-11 de Setembro, o único que George W. Bush ocultou completamente: como tornar os Estados Unidos menos dependentes da Arábia Saudita, para levá-la a se reformar e a cessar sua política de difusão de uma ideologia extremista e mortífera?
Durante esse tempo, a revolução energética permitiu que os Estados Unidos se voltassem para novos desafios, sobretudo aquele tem sido imposto pela China. O problema da estratégia de Obama é que seu desprezo pelas vitórias táticas fez com que os Estados Unidos perdessem muito crédito no Oriente Médio e que as relações internacionais são tanto uma questão de percepção quanto de conteúdo.
O outro ponto fraco do presidente americano se deve ao fato de que suas escolhas estratégicas estarão sujeitas à boa vontade de seu sucessor na Casa Branca em 2017, ao contrário de Putin, que ficará onde está por muito tempo. Para ganhar no xadrez, é preciso ter tempo.
E será que tudo isso teria sido possível sem que Barack Obama desistisse, no final de agosto de 2013, de uma campanha de bombardeios punitivos contra o regime sírio, que havia acabado de ultrapassar a "linha vermelha" estabelecida por Washington ao usar a arma química contra sua própria população? Provavelmente não.
Sendo assim, o fato de a Rússia ter entrado em cena na Síria a partir de 30 de setembro é ao mesmo tempo consequência e exemplificação da perda de liderança no Oriente Médio.
Então de um lado teríamos Vladimir Putin, conduzindo a dança e restabelecendo seu protegido, Bashar al-Assad, e ditando o ritmo militar e diplomático. De outro, um Barack Obama dividido pelos acontecimentos, incapaz de usar a força, sem crédito junto a seus próprios aliados, como a Turquia, a Arábia Saudita e mesmo a França, e disposto a se deixar levar pelo Irã.
Mas as coisas não parecem tão simples assim. É verdade que Putin, engajado em uma eterna política de "reviravoltas", coleciona sucessos táticos. Mas será que ele possui somente uma estratégia? A devolução da Crimeia? Uma operação soberba na visão da opinião pública russa, inútil do ponto de vista estratégico —havia uma garantia de que a frota russa ficaria em Sebastopol por 30 anos ao final de um acordo em 2010— e sobretudo muito cara (US$20 bilhões ou R$77 bilhões, segundo um estudo do Observatório Franco-Russo citado pelo "L'Opinion").
Em compensação, a desestabilização da Ucrânia levou a sanções europeias e americanas que, somadas à queda do preço do petróleo, mergulharam a economia russa em uma profunda recessão.
Ao intervir hoje na Síria ao lado do Irã, Moscou se alienou dos dois piores inimigos do regime de Assad, a Arábia Saudita e a Turquia. Só que a primeira continua sendo o árbitro dos preços mundiais do petróleo, do qual a Rússia depende de maneira vital, e a segunda ocupa uma posição nevrálgica no trajeto de South Stream, projeto de gasoduto russo que contorna a Ucrânia pelo sul.
Por fim, ao endossar o papel de xerife do Oriente Médio, que apesar de prestigioso acaba sendo terrível e impossível, Putin livra os Estados Unidos de um fardo que Obama não quer mais desde os fiascos no Iraque e no Afeganistão. De que serve o poder se não há recursos?
Putin restaurou o prestígio do Exército e da diplomacia russas, mas ele deixará um país sem outras riquezas além de suas matérias-primas, sem uma sociedade civil ou instituições sólidas e de demografia declinante. Um país cujo principal trunfo continua sendo seu poder de entrave. Só que o pôquer é um jogo onde se deve apostar cada vez mais alto para continuar tendo credibilidade.
Já Obama nunca se viu como presidente do mundo, somente como o dos Estados Unidos —ao contrário dos ingênuos de Oslo que lhe concederam precipitadamente o prêmio Nobel da Paz de 2009. Ele é um animal de sangue frio, calculista e sem sentimentos, como os sírios bem sabem: seu abandono cínico em 2013, sua recusa obstinada em entregar armas antiaéreas para prevenir as devastadoras bombas-barris custaram dezenas de milhares de vidas sírias, que entrarão para sua conta nos livros de História.
Talvez Obama não tenha muito senso moral ou brio, mas ele tem uma estratégia, sem dúvida nenhuma. Isso se traduz na prática por uma política pouco notável, que consiste em não intervir, ou intervir o mínimo possível, fazer com que mude a relação de forças, e trabalhar a longo prazo.
No Oriente Médio, restarão duas coisas de seus oito anos de mandato: o fim da dependência do petróleo da Arábia Saudita, graças a uma política que incentiva a exploração do petróleo de xisto, e o acordo nuclear com o Irã, ainda que para isso tenha de se alienar de Israel e da Arábia Saudita (ainda mais).
Ao agir dessa forma, o presidente americano respondeu ao principal desafio americano do pós-11 de Setembro, o único que George W. Bush ocultou completamente: como tornar os Estados Unidos menos dependentes da Arábia Saudita, para levá-la a se reformar e a cessar sua política de difusão de uma ideologia extremista e mortífera?
Durante esse tempo, a revolução energética permitiu que os Estados Unidos se voltassem para novos desafios, sobretudo aquele tem sido imposto pela China. O problema da estratégia de Obama é que seu desprezo pelas vitórias táticas fez com que os Estados Unidos perdessem muito crédito no Oriente Médio e que as relações internacionais são tanto uma questão de percepção quanto de conteúdo.
O outro ponto fraco do presidente americano se deve ao fato de que suas escolhas estratégicas estarão sujeitas à boa vontade de seu sucessor na Casa Branca em 2017, ao contrário de Putin, que ficará onde está por muito tempo. Para ganhar no xadrez, é preciso ter tempo.
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