quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

UMA PIADA RUSSA?

Teria Putin se transformado em uma piada nacional?
Rachel Polonsky - Prospect
O primeiro-ministro da Rússia, Vladimir Putin, considera seus olhos azuis frios como armas. “Eles consomem você”, confidencia Angus Roxburgh no início de seu novo livro, “Strongman: Vladimir Putin and the Struggle for Russia”. Seu olhar “é furioso, penetrante e altamente perturbador”. Na resposta mais estranha e reveladora de sua entrevista por telefone à TV em 15 de dezembro, Putin revelou o quanto acredita no poder de seu olhar. Quando perguntado sobre os protestos de massa contra seu regime naquele mês, ele se comparou a Kaa, o velho píton vaidoso de “O Livro da Selva” de Rudyard Kipling. Kaa está sempre com fome e usa seus “olhos malignos” para hipnotizar sua presa. “Há cidadãos na Federação Russa que possuem passaportes russos, mas atuam no interesse de Estados estrangeiros, com dinheiro estrangeiro”, disse Putin, rotulando seus críticos de traidores da pátria. “Você sabe o que digo para eles, ‘Venha para mim, Bandar-log’. Eu amo Kipling desde criança.”
Muitos russos compartilham o amor de Putin por Kipling. Não menos a intelligentsia liberal, desprezada por Putin como Bandar-log (banderlogi em russo), os macacos sem líder de Kipling, que “se gabam, conversam e fingem ser um grande povo, prestes a fazer grandes coisas”. Os Bandar-log “temem apenas Kaa”. Putin, que diz não usar a Internet, parecia desconhecer que grande parte do medo que gerou em sua primeira década no poder evaporou no ano passado. Provocados pelos resultados supostamente falsificados das eleições de dezembro para a Duma, dezenas de milhares de russos foram às ruas para protestar contra a decisão de Putin de disputar um terceiro mandato presidencial na eleição de 4 de março. (Ele supostamente ficou de fora em 2008 ao assumir o cargo de primeiro-ministro.) Se estivesse mais conectado à crescente cultura online da Rússia, ele saberia que ao convidar metaforicamente seus oponentes para virem até ele para serem hipnotizados e consumidos, ele estaria apenas se oferecendo ao ridículo dos satiristas, que exerceram um grande papel na repentina mudança do humor político da nação.
Na Rússia, poesia pode fazer as coisas acontecerem. Em fevereiro de 2011 –dois meses após o jovem advogado Alexei Navalny ter lançado seu site anticorrupção, Rospil.info– um escritor, um ator e um produtor de teatro se uniram em um tipo diferente de projeto de Internet, que chamaram de Cidadão Poeta. Toda semana, Dmitri Bykov prepara um pastiche em verso de um poeta conhecido a partir de algum evento na política, que Mikhail Yefremov –um mímico prodigioso– interpreta de modo extravagante.
O Cidadão Poeta foi uma sensação cultural imediata. O primeiro videoclipe foi sobre o segundo julgamento manipulado contra o inimigo de Putin, o ex-magnata do petróleo da Yukos, Mikhail Khodorkovsky. O segundo foi uma paródia do poeta romântico Mikhail Lermontov, no qual “Vova” (Putin) conversa com “Dima” (o presidente Dmitri Medvedev) sobre a possibilidade assustadora de uma Primavera Árabe em Moscou: “Nós não estamos em Túnis, não estamos no Cairo / Nós estamos na Rússia, como camundongos no queijo / e a variável árabe não serve para a Rússia”.
O Cidadão Poeta transformou em moda rir de Putin e Medvedev. Ao mesmo tempo em que recebia milhões de visitas online à medida que novos videoclipes eram postados toda manhã de segunda-feira, o Cidadão Poeta passou a fazer turnê pelas cidades russas, se apresentando em clubes e teatros. “Com seus versos, Bykov fez incomparavelmente mais do que qualquer líder de partido para aumentar o ativismo político dos russos”, se maravilhou o jornalista de oposição, Oleg Kashin.
Kaa foi um verdadeiro presente. Na segunda-feira após a entrevista de Putin, Yefremov apareceu como Kipling, com uma cobra gigante de brinquedo. Putin se tornou o Grande Pu. Vaidoso em sua nova pele (Putin parece ter se submetido a um tratamento cosmético em 2010, apesar das autoridades do Kremlin alegarem desconhecer “qualquer intervenção cirúrgica”), o píton Pu se gabava de parecer “uma enorme camisinha bombeada com Botox”.
“Seus braços e pernas tremem?”, gritava Pu contra os traiçoeiros banderlogi. “Nem um pouco”, o Bandar-log de Bykov ria em resposta: “Nós todos temos acesso a computador e você não nos assusta mais”.
Em pares de versos cômicos, Bykov capturou o sentimento que levou as pessoas às ruas em dezembro. Putin resumiu sua filosofia política ao citar Kipling; em nome de um grande número de cidadãos russos, o Cidadão Poeta respondeu à altura.
“É difícil saber que tenho que escrever um poema esta noite e que na segunda-feira centenas de milhares de pessoas o procurarão online”, disse Bykov quando me encontrei com ele em Moscou, em uma noite de sexta-feira no final de janeiro. Enquanto conversávamos em um café, o escritor Boris Akunin ligou para discutir o novo movimento político deles, a Liga dos Eleitores, e a “Voz da América” telefonou para pedir comentários sobre os nacionalistas com os quais os manifestantes liberais controversamente uniram forças. “Eu nunca tive intenção de entrar na política”, disse Bykov, ao desligar o telefone. “Eu não sou nenhum tipo de herói, sou apenas um hobbit; mas agora é um momento em que todos precisamos ser heróis.”
Como se fosse um czar ou salvador ungido divinamente, o retrato de Putin é ubíquo desde sua repentina ascensão ao poder em 2000. Eu morei em Moscou durante seus dois primeiros mandatos presidenciais e me lembro das pilhas de imagens de Putin que repentinamente apareceram em todas as livrarias. Como colocou o analista de pesquisas, Yuri Levada, o rosto de Putin era o espelho no qual as pessoas viam o reflexo de suas esperanças e desejos. Ao mesmo tempo, o culto de Putin sempre foi reconhecidamente excessivo, abertamente kitsch. Em um shopping center no trevo da Rodovia Rublyov, onde membros da elite rica de Moscou vivem em residências fortificadas, eu já vi um busto de mármore em tamanho real de Putin como imperador romano. Em 2003, a destilaria Cristall lançou uma vodca chamada “Putinka”. Uma revista de economia recebeu o nome de “VVP”, brincando com o fato de as iniciais de Vladimir Vladimirovich Putin coincidirem com a sigla para produto interno bruto em russo, “valovoi vnutrennyi produkt”.
“Tornou-se grotesco, uma autoparódia”, comentou recentemente o escritor Vladimir Sorokin sobre o regime de Putin, “e assim que o poder político se transforma em paródia na Rússia, ele não tem mais muito tempo de vida”.
Em Moscou recentemente, a lotada livraria na Rua Tverskaya, que costumava vender retratos de Putin, estava repleta de obras de líderes do protesto: Akunin, o jornalista Leonid Parfyonov e a romancista Lyudmila Ulitskaya. Os olhos azuis de Navalny olhavam fixamente da capa da “Esquire”. “Sobre Trapaceiros e Ladrões” era a manchete, citando o apelido dado por ele para os políticos da situação russa. Na vitrine estava o livro e DVD do Cidadão Poeta, com Yefremov na capa, rindo anarquicamente com uma cartola amassada, vestido como o escritor absurdista Daniil Kharms. Não havia nenhum sinal de Putin.
Protestos de rua se tornaram bacanas; ser um kremlyad, como os fantoches culturais do Kremlin são apelidados, está fora de moda. Até mesmo as leoas da sociedade – as belas celebridades que aparecem nas capas das revistas glamourosas – estão participando: a colunista de fofocas Bozhena Rynska escreve sobre eleições justas; Ksenia Sobchak (filha do antigo chefe de Putin, o ex-prefeito de São Petersburgo, Anatoly Sobchak) participa dos talk shows na TV, defendendo a democracia. Civilidade, honestidade, amor e gentileza são as novas palavras do momento em Moscou. “Os judeus caminham de braços dados com os antissemitas”, como colocou o Cidadão Poeta em “Uau! Que Campanha!”, o videoclipe que apareceu após a marcha de protesto até a Praça Bolotnaya no início de fevereiro. Este diverso movimento de oposição até o momento se opôs à mistura de intriga, provocação e hipocrisia do putinismo (ao estilo da KGB) com sinceridade, transparência e solidariedade.
E o que esse jorro inesperado de energia coletiva significa para o sistema de poder de Putin? Desde a Revolução Laranja da Ucrânia, protestos de massa são o cenário de pesadelo de Putin. As recentes manifestações são uma resposta à crescente corrupção que deixou os governantes da Rússia ricos além da medida, mas que eles não têm mais poder para esconder ou controlar. Sob Putin, a Rússia funciona como o que o cientista político Richard Sakwa chama de “Estado dual”, no qual uma ordem constitucional formal existe em tensão com as relações informais e conflitos facciosos que caracterizam o regime administrativo. Ao pedir por eleições honestas, a oposição expôs o blefe do regime. Pois o feudalismo inerente do putinismo esvaziou as instituições de democracia e lei, deixando apenas uma fachada fina, a paródia de um Estado moderno.
Nos últimos anos, detalhes ainda mais terríveis sobre as somas fantásticas de dinheiro roubadas pelas autoridades corruptas do orçamento do Estado e desviadas das estatais vazaram para a esfera pública. É um dinheiro que não está sendo gasto em hospitais, estradas e escolas –e está evidente. Com seus recursos naturais, a Rússia deveria ser um dos países mais ricos do mundo; fora de Moscou, ela ainda parece um dos mais pobres.
Os ideólogos de Putin estão pregando uma nova narrativa para proteger o status quo. Eles continuam a apresentá-lo como o salvador da nação. Artigos enfadonhos sobre a necessidade de reforma deste ou daquele setor da economia são publicados sob seu nome nos jornais. Putin confidenciou recentemente a um grupo de jovens advogados que considera as campanhas eleitorais enojantes, explicando que é o respeito pelos anciãos dos clãs na Tchetchênia que resulta em 100% dos votos para o partido do governo. Sua máquina de propaganda retomou níveis da Guerra Fria de retórica antiamericana. Os protestos da oposição foram caracterizados como sendo uma “praga Laranja”, uma referência à Revolução Laranja de 2004 na Ucrânia, quando os planos de Moscou para sua vizinha foram frustrados por manifestações de rua apoiadas pelos Estados Unidos.
Para liderar o contra-ataque retórico, um ex-diretor de teatro chamado Sergei Kurginyan despontou em meio aos kremlyadi habituais e “patriotas” anti-Ocidente. Em 4 de fevereiro, Kurginyan promoveu um comício “anti-Laranja” na colina Poklonnaya, nos limites de Moscou, perto do parque onde as vitórias sobre Napoleão e Hitler são comemoradas. Kurginyan parece apreciar teorias de conspiração. Sua ideologia é um coquetel potente de revanchismo vermelho, messianismo russo e antiamericanismo. Kurginyan vê Stalin como a personificação da grandeza trágica da Rússia. A maior catástrofe na história russa, para Kurginyan, foi a dissolução da União Soviética.
Os comícios de Kurginyan são noticiados como pró-Putin, mas apesar das pessoas na multidão acenarem bandeiras de Putin, Kurginyan disse que sua campanha não é pró-Putin, apenas anti-Laranja. Em seus discursos ele raramente menciona o primeiro-ministro. Apesar de Putin ter aparecido em um comício de Kurginyan para agradecer à multidão, Kurginyan disse que Putin não receberá seu voto. Aos olhos de Kurginyan e semelhantes, Putin vale apenas ser apoiado como baluarte da autocracia contra o “Laranjismo” democrático que o Departamento de Estado americano supostamente fomenta, como parte de seu plano para dividir e ocupar a Rússia, visando roubar seu petróleo e gás para pagar o déficit americano. A Rússia “nunca apoiará o jogo da América na Síria” e continuará armando Bashar Assad, declarou Kurginyan no final de janeiro. No seu entender, e no de Putin, é o mesmo jogo que está sendo jogado nas ruas de Moscou.
Os olhos azuis de Putin bastam para manter o sistema político que ele criou? Nenhum cirurgião plástico pode desfazer os estragos feitos pelo Facebook à sua imagem. Agora que ele perdeu seu poder de hipnotizar, será que o Grande Pu será esmagado pelo seu próprio peso?
O que importa não é quando, mas como o sistema de Putin chegará ao fim. A Rússia tem uma história assustadora. Durante a euforia dos protestos de rua recentes, uma das minhas amigas em Moscou escreveu em seu mural no Facebook: “No momento, parece como se os prisioneiros políticos estivessem prestes a ser libertados, como se os exilados fossem voltar e como se Putin fosse desaparecer”. “Por que você está otimista?” comentou um sábio historiador russo sobre a postagem dele: “Ninguém vai voltar. Putin não vai a lugar nenhum. Essas pessoas lutarão até o fim. É hora de vocês começarem e temer por seus maridos e filhos”.
Tradução: George El Khouri Andolfato

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