Juan Ramón Rallo - IMB
A
literatura marxista solidificou a ideia de que o valor de troca de uma
mercadoria advém do trabalho efetuado para produzi-la. Sendo assim, segundo os marxistas, é
impossível o capitalista gerar valor se ele próprio não tem de trabalhar. Por conseguinte, seus lucros só podem ter
origem em uma apropriação indevida do valor gerado pelos seus alienados
empregados.
Falando
mais especificamente, dado que o capitalista possui o controle exclusivo dos
meios de produção, ele tem o poder de não
remunerar os proletários por toda a jornada de trabalho em que geram
valor. Ou seja, o capitalista explora o
trabalhador arrebatando deles a mais-valia.
Este
é, em suma, o cerne da teoria
marxista da exploração: o capitalista, que não efetua trabalho físico,
retém para si uma parte do valor desses bens que os trabalhadores produziram, e
ele consegue fazer isso graças ao seu monopólio dos meios de produção (os
quais, vale dizer, são bens complementares indispensáveis ao trabalhador, sem
os quais os trabalhadores nada conseguiriam produzir).
Ocorre
que o ponto de partida dessa teoria é equivocado: ao contrário do que alegam os
marxistas, a atividade econômica do capitalista de fato gera valor, e seu papel não pode ser simplesmente
eliminado. Se eliminarmos os
capitalistas da equação, alguém terá de concentrar todas as funções que hoje os
capitalistas desempenham, e esse alguém mereceria a remuneração (mais-valia)
que atualmente é dos capitalistas.
Vejamos
um exemplo intuitivo para entender por quê.
Um mundo de pequenos burgueses
Imagine
uma sociedade na qual todos os indivíduos são trabalhadores autônomos (ou seja,
não existe trabalho assalariado), e todos eles possuem meios de produção
avaliados em $ 100.000 — ou seja, possuem terras, instalações industriais,
maquinários e matérias-primas valorados em $100.000 e adaptados à atividade
profissional que realizam.
Nesta
sociedade, a distribuição da riqueza é perfeitamente igualitária, de modo que
não existem nem grandes capitalistas exploradores e nem pobres despossuídos que
se veem obrigados a vender sua força de trabalho. Há simplesmente uma divisão do trabalho, a
qual faz com que cada indivíduo se especialize em produzir determinados bens
que serão trocados por outros bens produzidos por outros indivíduos.
Será
que sob estas condições seria alcançado um equilíbrio econômico estável no qual
a mais-valia e o trabalho assalariado desaparecem? Negativo.
Mesmo que todos os indivíduos possuam idêntico poder de barganha, que
todos tenham começado exatamente do mesmo ponto de partida (ou seja, nenhum
começou já com alguma vantagem), e que ninguém tenha recorrida à violência,
necessariamente alguns indivíduos mais competentes veriam seu patrimônio
crescer e outros menos competentes veriam seu patrimônio estagnar ou mesmo
encolher.
Comecemos
constatando o fato de que, para manter o patrimônio, cada indivíduo tem
necessariamente de reinvestir continuamente uma a fatia de suas receitas: as
instalações industriais se depreciam, as máquinas se danificam e têm de ser
substituídas (ou, no mínimo, têm de passar por manutenções recorrentes), as
terras devem ser aradas e irrigadas etc.
Ou seja, nem todos os bens adquiridos pelos autônomos são bens de
consumo; é necessário também adquirir bens de capital. E, ao se adquirir bens de capital, a compra
de bens de consumo tem necessariamente de ser reduzida — afinal, os autônomos
deverão poupar uma fatia de suas receitas e dedicá-la à renovação de seus
próprios bens de capital.
Nesse
cenário, veremos três grandes grupos de indivíduos: aqueles que poupam
estritamente o necessário para repor seu capital; aqueles que poupam mais do
que o estritamente necessário; e aqueles que poupam menos que o necessário.
O
primeiro grupo de indivíduos conseguirá conservar seu capital. O segundo grupo tenderá a aumentar seu
capital (ele disporá de um maior número de bens de capital com os quais será
capaz de fabricar uma maior quantidade de bens de consumo no futuro). E o terceiro grupo verá seu patrimônio
encolher (as máquinas irão se danificar e não haverá reposição, as terras
perderão sua fertilidade, as instalações industriais deixarão de ser funcionais
etc.).
Mais
ainda: é perfeitamente possível que haja indivíduos que tiveram um desejo tão
premente de consumir agora e nenhuma vontade de poupar para o futuro, que
optaram por vender seu patrimônio para outros indivíduos, os quais foram
capazes de comprar esse patrimônio em decorrência de terem previamente poupado
a maior parte de suas receitas (ou seja, alguns indivíduos consumiriam muito no
presente à custa de se desfazer do seu capital, e outros aumentariam seu
capital à custa de consumir muito pouco no presente)
Parece
claro que, só por esta razão comportamental, ocorreram profundas alterações
patrimoniais que levaram alguns indivíduos a se desfazer de todo o seu capital
e, consequentemente, os obrigaram a, no futuro, a ter de trabalhar para outros
indivíduos que ou mantiveram seu capital ou aumentaram seu capital.
No
entanto, a verdadeira explicação para os grandes movimentos patrimoniais não está
nas distintas propensões a poupar ou a consumir, mas sim no grau de acerto ou de erro com que o capital é reinvestido. Como já indicado, cada indivíduo com um
determinado patrimônio deveria continuar reinvestindo nele conforme seus ativos
vão se deteriorando com o passar do tempo.
Só que — e isso é importante — essas decisões de reinvestimento não
são automáticas: quando um indivíduo reinveste, ele tem de decidir em quê irá
reinvestir; e, ao fazê-lo, ele tanto pode acertar (inclusive acertar
extraordinariamente) quanto pode se equivocar (inclusive se equivocar
estrepitosamente).
Assim,
em uma economia caracterizada pela divisão do trabalho e pelas trocas
comerciais voluntárias, uma das tarefas mais complicadas que existe é
justamente a de selecionar os projetos de investimento mais exitosos: não se
sabe de antemão o que produzir e nem qual é a melhor forma de fazê-lo (com
efeito, a resposta para essas duas perguntas está continuamente mudando à
medida que se alteram as preferências dos consumidores e o conhecimento das
técnicas de produção disponíveis).
Consequentemente, é necessário dedicar vultosos recursos intelectuais
apenas para se descobrir isso.
Se,
nos anos 1990, um indivíduo tivesse investido maciçamente em sua empresa de
máquinas de escrever — ou, atualmente, em celulares que não sejam smartphones,
ou em câmeras analógicas, ou em navegadores de internet que não se adaptam às
crescentes exigências dos usuários — e continuasse reinvestindo suas receitas
para tentar manter esse tipo de negócio, hoje ele estaria arruinado: seus
ativos utilizáveis na fabricação de máquinas de escrever não valeriam nada
hoje.
Por
outro lado, se um indivíduo reinveste seu capital de maneira cada vez mais
acertada, de modo que seus produtos vão abocanhando uma demanda crescente do
público consumidor, sem que outros produtores sejam capazes de imitá-lo na
produção de bens tão valorados pelos consumidores, seu capital irá se
multiplicar continuamente, ainda que ele tenha partido de uma estrita posição
de igualdade com o resto dos empresários (com efeito, os produtores menos
competitivos que fabricam bens tidos como total ou parcialmente substituíveis vivenciarão
uma queda na demanda, e seu capital perderá valor).
Novamente,
portanto, chegamos a outro motivo que explica por que alguns indivíduos podem
aumentar seu capital ao passo que outros podem se descapitalizar, tendo
consequentemente de trabalhar para os primeiros (pelo menos até que consigam
poupar de seu salário um capital suficiente para voltarem a ser produtores
autônomos).
Mas
há um terceiro motivo, em parte derivado do anterior, que explica como o
patrimônio das pessoas poderia se tornar desigual: já vimos que, ao escolher
onde ou em quê ele deve se especializar, um indivíduo está correndo um
considerável risco de perda patrimonial.
No entanto, nem todos os planos de negócios são igualmente arriscados: existem
setores cujos padrões de demanda ou cujas técnicas produtivas são muito mais
estáveis e previsíveis do que outros. Um
restaurante de bairro, com uma clientela muito fiel, não é a mesma coisa que
uma start-up biotecnológica.
Consequentemente,
aqueles setores menos arriscados tendem a ser os preferidos dos investidores
avessos ao risco: quase todos desejam investir neles, de modo que a
concorrência se torna muito mais intensa e inevitavelmente os preços se igualam
aos custos. Por outro lado, existem
outros setores muito mais arriscados em que, justamente por isso, a
concorrência é quase inexistente e, por conseguinte, os produtores
bem-sucedidos que ali atuam podem cobrar preços maiores do que seus custos —
ou seja, setores em que é possível obter lucros (e no qual os produtores malsucedidos
acumulam prejuízos e perdem seu capital).
Com
tudo isso em mente, é bastante provável que, da mesma maneira que a propensão
para poupar não é a mesma para cada indivíduo, tampouco as predisposições para
assumir riscos são idênticas, de modo que aqueles que obtiverem êxito nos
setores mais arriscados verão seu capital crescer muito mais rápido do que
aqueles que preferem o conforto dos setores menos arriscados.
Mais
ainda: é possível haver indivíduos tão avessos ao risco, que eles preferem
vender todo o seu patrimônio não para consumi-lo, mas sim para investir
diversificadamente em uma variedade de empresas muito pouco arriscadas.
"Diversificação + pouco risco" implica que as probabilidades de perdas
patrimoniais serão quase nulas. Só que,
em troca dessa segurança, a renda que eles obterão desses investimentos também
serão quase nulas.
Ou
seja, pode haver indivíduos que, em troca de não quererem ver seu patrimônio
exposto ao risco de projetos ruins, optem por renunciar à gestão de seu próprio
patrimônio, ainda que não obtenham nenhuma renda em troca desta renúncia. Tais indivíduos também se converteriam
inevitavelmente em trabalhadores assalariados: dado que colocaram seu
patrimônio em algo que não gera renda (o equivalente a terem guardado o dinheiro
embaixo do colchão), se quiserem obter receitas terão de trabalhar dentro dos
planos empresariais de outros capitalistas.
As três funções essenciais do capitalista
Tendo
em mente esse exemplo, é fácil inferir quais são as três funções econômicas
valiosas desempenhadas por todo capitalista: adiamento do seu consumo próprio
para financiar investimentos, seleção de projetos de investimentos
bem-sucedidos, e concentração patrimonial de riscos.
Dito
de outro modo, o empregado assalariado, à diferença do capitalista, pode
consumir 100% de suas receitas, não tem de dedicar nada do seu tempo para
avaliar os acertos ou os erros de seus empreendimentos, e, em caso de falência
do empreendimento em que trabalha, perde seu emprego mas não perde seu patrimônio.
Apenas
imagine o que aconteceria se, a cada vez que uma empresa quebrasse, seus
empregados também perdessem o dinheiro em sua conta bancária e até mesmo
tivessem penhorados seu imóveis totalmente quitados? É exatamente isso o que pode acontecer a um
capitalista.
Evidentemente,
a função econômica desempenhada pelo capitalista é custosa e valorosa: é custoso
e valoroso que seja ele quem restringe seu consumo para financiar uma
atividade, que sela ele quem dedica seu tempo e esforço para avaliar projetos
empreendedoriais, que seja ele quem concentra os riscos dos investimentos.
Os
capitalistas adiantam bens presentes (salários) aos trabalhadores em troca de
receber, somente quando o processo de produção estiver finalizado, bens
futuros. Existe necessariamente uma diferença de valor entre os bens presentes
dos quais os capitalistas abrem mão (seu capital investido na forma de salários
e maquinário) e os bens futuros que eles receberão (se é que receberão).
Os
capitalistas, ao adiantarem seu capital e sua poupança para todos os seus
fatores de produção (pagando os salários da mão-de-obra e comprando
maquinário), esperam ser remunerados pelo tempo de espera, pela postergação do
seu consumo, pela seleção do projeto de investimento e pelo risco assumido. Por
outro lado, os trabalhadores, ao receberem seu salário no presente, estão
trocando a incerteza do futuro pelo conforto da certeza do presente.
Ao
contrário do que alegam os marxistas, o fato de o trabalhador não receber o
"valor total" da produção futura nada tem a ver com exploração;
simplesmente reflete o fato de que é impossível o homem trocar bens futuros por
bens presentes sem que haja um desconto. O pagamento salarial representa bens
presentes, ao passo que os serviços de sua mão-de-obra representam apenas bens futuros.
A
relação trabalhista é apenas uma relação de troca entre bens presentes (o
capital e a poupança do capitalista) por bens futuros (bens que serão
produzidos pelos trabalhadores e pelo maquinário utilizado, mas que só estarão
disponíveis no futuro).
Se
essas atividades — postergação do consumo, seleção criativa de projetos de
investimento e uso arriscado do patrimônio — não tivessem valor e o
capitalista não pudesse "cobrar" por elas, simplesmente não haveria atividade
econômica, não haveria produção e não haveria enriquecimento da sociedade.
E
é essa remuneração que o marxismo chama de "mais-valia", fruto da exploração
capitalista. O curioso, no entanto, é
que se o capitalista fosse obrigado a prestar essas atividades valiosas, mas fosse
proibido de cobrar por elas, então seria ele o explorado.
Se
o encanamento da sua casa estraga, você pode ou contratar um encanador (que irá
levar parta de suas receitas) ou consertar o encanamento você próprio (mantendo
assim a totalidade das suas receitas).
Igualmente, para fazer frente às condições, aos riscos e às dificuldades
de uma economia caracterizada pela divisão do trabalho, podemos ou nos deixar
"explorar" por capitalistas ou nos converter em "autônomos
auto-explorados". Mas o que não podemos fazer é contratar um
encanador e não lhe pagar nada, tornando-nos assim "autônomos
heteroexploradores". E é exatamente isso
o que implicitamente defendem os muitos críticos da exploração capitalista.
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