A banalidade da tunga
Elio Gaspari - FSP
Alguns magistrados recebem o que lhes é devido, os sonegadores não pagam seus impostos, e a conta é sua
Os saques dos magistrados felizardos contra a bolsa da Viúva nada têm a ver com corrupção. É coisa pior. Têm a ver com a banalidade de um regime jurídico e tributário que tira dinheiro do andar de baixo e beneficia o de cima, até mesmo quando ele delínque. Quem paga impostos e tem dinheiro a receber se ferra, mas quem não os paga se beneficia.
Nos anos 90, o Congresso concedeu aos parlamentares um auxílio-moradia que hoje está em R$ 3.000 mensais. Seus defensores argumentam que um deputado do Paraná é obrigado a manter casa em Brasília ou a pagar hotel durante a duração do seu mandato e pode perdê-lo na próxima eleição.
Pouco a ver com a magistratura, função vitalícia, de servidores inamovíveis fora de regras estritas.
Em 2000, o Supremo Tribunal Federal estendeu o auxílio-moradia aos desembargadores (que vivem nas capitais e delas não são transferidos). Com o direito reconhecido, os doutores tinham direito aos atrasados.
Tome-se o exemplo do juiz Cezar Peluso, atual presidente do Supremo. Ele entrou na carreira em 1968, aos 26 anos, e passou pelas comarcas de Itapetininga, São Sebastião e Igarapava. Nessa fase deveria receber um auxílio-moradia. E depois? Em 1972, ele foi para São Paulo, onde viveu os 21 anos seguintes. (O crédito de Peluso teria ficado em R$ 700 mil.)
Os magistrados poderiam ter caído num regra perversa da Viúva: "Devo, não nego, pagarei quando puder". Em juridiquês ela se chama fila dos precatórios.
Tome-se outro exemplo, de um policial aposentado que teve reconhecido pela Justiça um crédito de R$ 1 milhão. Ele foi para a fila da choldra.
A dos magistrados seria outra, mesmo assim, os Tribunais de Justiça autorizaram pagamentos por motivos especiais. Um desembargador foi atendido porque estava deprimido; outro, porque choveu na sua casa; um terceiro adoeceu.
No andar de cima, alguns doutores levaram o seu. O policial, no de baixo, ficou na fila até que surgiu a mágica do mercado paralelo de precatórios. Em 2009, uma emenda constitucional permitiu que os créditos fossem negociados, e o policial vendeu o seu por R$ 250 mil.
Tudo bem, problema de quem comprou seu lugar na fila. Não. A emenda permite que os créditos dos precatórios sejam usados para que sonegadores quitem dívidas tributárias.
Diversos Estados regulamentaram esse comércio. No início de janeiro, no Rio, o governador Sergio Cabral promulgou uma lei da Assembleia pela qual os sonegadores de impostos podem quitar suas contas, livres das multas, com abatimento de 50% nos juros de mora, pagando 95% com papéis de precatórios e 5% em dinheiro.
Fica-se assim: o magistrado recebeu de uma vez tudo a que tinha direito. O policial aposentado cansou da fila e preferiu receber 25%. O sonegador que comprou seu precatório transformou R$ 250 mil em R$ 1 milhão.
Admitindo-se que ele devesse R$ 1,2 milhão, livrou-se de R$ 200 mil das multas e quitou o débito gastando R$ 300 mil.
O sonegador economizou R$ 900 mil. Para arrecadar um ervanário desses, a Viúva precisa que um policial cujo salário é de R$ 6.000 mensais pague todos os impostos que lhe deve, ao longo de 32 anos.
Tudo na mais perfeita legalidade.
* Millôr Fernandes
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