A furtiva invasão russa
O Estado de S.Paulo
Se é verdade, como diz o presidente Barack
Obama, que "não está no horizonte" uma solução militar para a crise
provocada pelo apoio armado da Rússia de Vladimir Putin aos separatistas
ucranianos que enfrentam o governo de Kiev no leste do país, é
inevitável perguntar quais seriam as alternativas para conter o que já
se tornou a maior ameaça à segurança europeia desde a sanguinária guerra
de todos contra todos na antiga Iugoslávia nos anos 1990.
A
questão exige uma breve viagem no tempo. Em março, depois da anexação
da Península da Crimeia à Federação Russa, os Estados Unidos e, a
contragosto, a União Europeia impuseram a Moscou um pacote de sanções
que não chegaram a fazer cócegas no autocrata do Kremlin, muito menos
arranharam a hegemonia política e a popularidade do ex-oficial da KGB
soviética, no poder há década e meia, como primeiro-ministro ou
presidente.
É certo que, em represália à queda do governo
de seu bom interlocutor Viktor Yanukovich, ao cabo de protestos maciços
contra a sua recusa a preparar a integração da Ucrânia à União Europeia,
Putin instigou o plebiscito que levou, por esmagadora maioria de votos,
à reintegração da Crimeia à Rússia, de que fazia parte desde o século
18. Mas é certo também que, com a sua iniciativa, Moscou violou o
Memorando de Budapeste, de 1994, que comprometia os signatários - além
da Rússia, os Estados Unidos e o Reino Unido - com a independência,
soberania e integridade territorial ucraniana em troca da remoção das
armas nucleares ali estocadas pela URSS.
O êxito de Putin, a
custo irrisório, o animou a dar gás - respaldo político, armas e apoio
logístico - aos ativistas filorrussos da região industrial de Donbass,
concentrados em cidades como Donetsk e Lugansk. Sem o que eles não
teriam podido abater no espaço aéreo ucraniano, em julho, o Boeing da
Malaysia Airlines que transportava 298 pessoas de Amsterdã a Kuala
Lumpur, confundido com um avião militar inimigo. Nova e mais
adstringente rodada de sanções afetou as finanças russas, mas não a
disposição de Putin de continuar dando suporte militar aos bandos
insurgentes, engrossando os seus quadros com "voluntários" e recursos
bélicos.
A intervenção se acentuou desde então, à medida
que as Forças Armadas ucranianas passaram a acuar os separatistas - que,
sem os russos, não seriam páreo para elas. Nessa escalada, como acabam
de revelar imagens de satélite divulgadas pela Otan, a aliança militar
ocidental, Moscou despachou para o vizinho país, entre julho e a semana
passada, mais de mil soldados e grande quantidade de moderno armamento
pesado. O destino aparente do comboio era Krasnodon, a 49 quilômetros de
Lugansk. Ao mesmo tempo, abrindo uma segunda frente de combate, forças
russas participaram ativamente da tomada da cidade portuária de
Novoazovsk.
Trata-se de uma invasão - furtiva, dissimulada,
desmentida, mas ainda assim invasão -, embora o presidente Obama evite o
termo para não agravar as tensões. Já o brigadeiro holandês Nico Tak,
do Alto Comando da Otan, dispensou eufemismos ao dizer que a invasão
visa a aliviar a pressão sobre os separatistas e a "congelar o
conflito". Ou seja, podendo conviver com uma Ucrânia inimiga, mas não
inimiga e forte, na avaliação de uma fonte ligada ao establishment
militar russo, Putin pretende submeter o sudeste ucraniano a um quadro
de instabilidade duradoura - e onerosa. Isso não seria um fim, mas um
meio.
Putin já declarou que seu objetivo é forçar o governo
de Kiev a federalizar a nação. Com o fim do Estado unitário, as áreas
de presença russófona fatalmente se transformariam em protetorados de
Moscou. Mas, como disse Obama em relação a uma saída militar para o
confronto, essa hipótese tampouco parece "estar no horizonte". A Ucrânia
é grande demais e estratégica demais para o Ocidente aceitar que Putin
estabeleça em um de seus mais ricos espaços uma nova Ossétia do Sul, que
a Rússia apartou da Geórgia, depois da invasão de 2008. A questão é
como impedir que a história se repita.
Nenhum comentário:
Postar um comentário