Thomas L. Friedman - NYT
Os EUA estão inundados por crianças refugiadas de países centro-americanos em colapso; os esforços para conter a grande epidemia de ebola na África ocidental estão pressionando os governos de lá; os jihadistas escavaram um califado sanguinolento dentro do Iraque e da Síria; depois de ter comido a Crimeia, a Rússia continua dando mordidas na Ucrânia; e a agência de refugiados da ONU acaba de anunciar que "o número de refugiados, solicitantes de asilo e pessoas desalojadas internamente em todo o mundo superou, pela primeira vez na era pós-Segunda Guerra Mundial, os 50 milhões de pessoas". Se parece que o mundo da desordem está se expandindo contra o mundo da ordem, não é sua imaginação. Existe aí uma triste lógica.
Três grandes tendências estão convergindo. A primeira é a que um de meus professores, Dov Seidman, chama de número crescente de pessoas "não livres" no mundo - os milhões que "conseguiram um certo tipo de liberdade, mas ainda se sentem não livres porque agora têm consciência de que não têm o tipo de liberdade mais importante".
Seidman, autor do livro "How" [Como] e executivo-chefe da LRN, que assessora empresas globais sobre governança, indica que embora tenha havido um grande enfoque garantido nos efeitos desestabilizadores da desigualdade de renda, existe outra desigualdade igualmente desestabilizadora surgindo ao mesmo tempo: "É a desigualdade de liberdade, e é ainda mais perturbadora".
Isso pode parecer estranho. Depois da queda do Muro de Berlim e da derrubada dos ditadores no despertar árabe, como é possível que um número maior de pessoas se sinta "não livre"?
Seidman olha para o mundo através do esquema "liberdade de" e "liberdade para". Nos últimos anos, afirma ele, "um número maior de pessoas garantiu sua 'liberdade de' diferentes autocratas em diferentes países" - Ucrânia, Tunísia, Egito, Iraque, Líbia, Iêmen, para citar alguns. "Mas poucos estão conseguindo a liberdade que realmente apreciamos", acrescenta. "E essa é não apenas a 'liberdade de', mas 'liberdade para'."
"Liberdade para" é a liberdade para viver sua vida, falar o que pensa, iniciar seu próprio partido político, formar sua própria empresa, votar em qualquer candidato, perseguir a felicidade e ser você mesmo, seja qual for sua orientação sexual, religiosa ou política.
"Proteger e permitir todas essas liberdades", diz Seidman, "exige o tipo de leis, regras, normas, confiança mútua e instituições que só podem ser construídas sobre valores compartilhados e por pessoas que acreditam estar juntas em uma jornada de progresso e prosperidade."
Esses sistemas jurídicos baseados em valores e instituições são exatamente o que tantas sociedades deixaram de construir depois de derrubar seus autocratas. É por isso que o mundo hoje pode ser dividido em três tipos de espaços: países com o que Seidman chama de "ordem sustentável", ou ordem baseada em valores comuns, instituições estáveis e consenso político; países com ordem imposta - ou ordem baseada em uma liderança com punho de ferro, de cima para baixo, ou apoiada pelo dinheiro do petróleo, ou combinações de ambos, mas sem valores reais compartilhados ou instituições; e, finalmente, regiões inteiras de distúrbio, como Iraque, Síria, América Central e áreas crescentes das Áfricas Central e do Norte, onde não há mais um punho de ferro no alto nem valores comuns embaixo para manter os Estados unidos.
A ordem imposta, disse Seidman, "depende de ter poder sobre as pessoas e autoridade formal para coagir à fidelidade e obrigar à obediência", mas ambos são muito mais difíceis de sustentar hoje e em uma era de cidadãos cada vez mais poderosos, informados e conectados e empregados que podem facilmente se conectar e colaborar para derrubar a autoridade que consideram ilegítima.
"Exercer o poder formal sobre as pessoas", acrescenta ele, "está ficando cada vez mais elusivo e dispendioso" - seja pelo número de pessoas que você tem de matar ou prender ou pela quantia de dinheiro que você tem de gastar para anestesiar a população a ser submissa ou indiferente - "em última instância, não é sustentável". O único poder que será sustentável em um mundo onde mais pessoas têm "liberdade de", afirma Seidman, "é o poder baseado em ter uma conversa de duas mãos com as pessoas, poder que se constrói sobre a autoridade moral que inspira a cidadania construtiva e cria o contexto para 'liberdade para'."
Mas como gerar essa liderança e instituições sustentáveis é difícil e exige tempo, temos muito mais vazios desordenados no mundo hoje - onde as pessoas têm "liberdade de" sem construir "liberdade para".
O maior desafio para o mundo da ordem hoje é colaborar para conter esses vácuos e preenchê-los com ordem. É isso que o presidente Barack Obama está tentando fazer no Iraque, exigindo que os iraquianos construam um governo inclusivo sustentável juntamente com qualquer ação militar americana contra os jihadistas de lá. De outro modo, nunca haverá uma ordem autossustentável no país e eles nunca serão realmente livres.
Mas conter e reduzir o mundo da desordem é uma tarefa enorme, exatamente porque envolve tanta construção de nações - além da capacidade de qualquer país. O que leva à segunda tendência perturbadora hoje: quão fraco ou desconjuntado está o mundo da ordem. A UE está mergulhada em um buraco econômico e de desemprego. A China se comporta como se estivesse em outro planeta, contente por ser um caronista no sistema internacional. E o presidente russo, Vladimir Putin, está interpretando uma fantasia czarista paranoica na Ucrânia, enquanto o mundo jihadista da desordem se aproxima pelo sul.
Agora acrescente uma terceira tendência e você pode ficar realmente preocupado: os EUA são o esteio que sustenta todo o mundo da ordem. Mas nossa incapacidade em concordar sobre políticas que garantiriam nossa vitalidade econômica em longo prazo - uma lei de imigração que facilitaria o caminho para imigrantes enérgicos e talentosos; um imposto único do carbono que substituiria os impostos de renda e corporativos; e empréstimos do governo com taxas baixas para reconstruir nossa infraestrutura e criar empregos, enquanto gradualmente fazemos um reequilíbrio fiscal em longo prazo - é a definição de míope.
"Se não pudermos fazer o trabalho duro de construir alianças em casa", diz David Rothkopf, autor do livro (a ser publicado) "National Insecurity: American Leadership in an Age of Fear" [Insegurança nacional: liderança americana em uma era de medo], "nunca teremos a força ou a capacidade de construí-las ao redor do mundo."
A Guerra Fria envolveu duas visões de ordem concorrentes. Isto é, os dois lados estavam no mundo da ordem e tudo o que nós no Ocidente precisávamos fazer era colaborar o suficiente para conter o leste/comunismo. Hoje é diferente. É um mundo de ordem versus um mundo de desordem - e essa desordem só pode ser contida se o mundo da ordem colaborar consigo mesmo e com as pessoas em desordem para construir sua "liberdade para".
Mas "construir" é muito mais difícil que "conter". Exige muito mais energia e recursos. Temos de parar de brincar em casa como se este momento fosse o mesmo velho, o mesmo velho - e nossos aliados reais e tácitos também deveriam acordar. Preservar e expandir o mundo da ordem sustentável é o desafio das lideranças de nosso tempo.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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