sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Livro revê impacto social da canção como arma de protesto
Fernando Navarro - El País
AP Photo
A cantora Billie Holiday, intérprete de "Strange Fruit"A cantora Billie Holiday, 
intérprete de "Strange Fruit"
Quando Billie Holiday cantou pela primeira vez no Teatro Apollo, no Harlem, o filho do dono do teatro, Jack Shiffman, disse: "Não havia uma alma entre o público que não se sentisse estrangulada".
O cantor negro Josh White afirmou: "A música é minha arma. Quando canto 'Strange Fruit' sinto-me tão poderoso quanto um tanque M-4". Aquilo certamente não era apenas uma canção. Como a descreveu um jornalista do "New York Post": "Se a ira dos explorados chegar um dia a arder no sul, agora já tem sua Marselhesa".
Com sua denúncia dos linchamentos de negros nos EUA em 1939, "Strange Fruit" [Fruto estranho] é considerada a primeira canção de protesto da história da música popular em 33 rotações por minuto por "Historia de la canción protesta" (ed. Malpaso --em português História da canção de protesto, inédito), o monumental livro de quase 900 páginas escrito pelo crítico musical britânico Dorian Lynskey, do jornal "The Guardian".
"É um começo natural, porque foi quando a canção pop abraçou totalmente a política", explica Lynskey em conversa por telefone, de Londres.
Aconteceu algo semelhante em 1944 com "This Land is Your Land" [Esta terra é sua], de Woody Guthrie, que, agarrado a sua guitarra com a inscrição "esta máquina mata fascistas", dizia que seus olhos eram uma câmera que "tirava fotos de todo mundo". Com sua máquina, o músico podia chegar de forma mais eficaz ao cidadão comum, em povoados e estradas secundárias, do que, por exemplo, os escritores.
E ao escutar "Tom Joad", a canção de Guthrie inspirada na novela "As Vinhas da Ira", seu autor, o prêmio Nobel de literatura John Steinbeck, exclamou: "Maldito! Em 17 versos apanhou a história inteira que levei dois anos para escrever".
Mas Steinbeck, admirador do bardo combativo, reconheceu seu valioso trabalho: "Canta as canções de um povo e, de certo modo, ele é esse povo".
"Essas canções fizeram colidir intensamente o entretenimento dos clubes e dos palcos com a realidade social mais brutal ou injusta", aponta Lynskey.
Dessa tensa colisão, gerada entre o mundo do espetáculo e os acontecimentos políticos, sociais e culturais do último século, alimenta-se esta minuciosa revisão que se concentra somente em 33 canções, de "Strange Fruit" até "American Idiot", de Green Day, a composição que serve a Lynskey de pretexto para analisar como eram os EUA em plena psicose contra o terrorismo na era de George W. Bush e observar o papel que diversos músicos desempenharam nesse período.
"Minha intenção foi fazer algo como biografias de canções", diz.
De fato, esse é o grande triunfo do livro: por trás de cada canção se desdobra toda uma época e um contexto político, social e cultural, fazendo de sua exígua seleção um mal menor, enquanto prevalece uma leitura apaixonante do poder da música para ser crônica humana e social, embora seja muito difícil definir o conceito de canção de protesto.
"Bob Dylan se encarregava de lembrar pouco antes de tocar 'Blowin' in the Wind' que essa não era uma canção de protesto, mas é impossível não reconhecer o efeito que teve. Interessam-me as que abrem uma porta pela qual escorre o mundo exterior", afirma.
De Dylan, epítome a esse respeito, inclui-se "Master of War" (1963). Lynskey lhe concede o simbólico título de liquidador da muito ativista comunidade folk ao dar o salto para a modernidade rock e passar do "nós" ao "eu". Dylan teve vontade de enterrar suas próprias canções de protesto, mas, como lhe respondeu o incansável agitador Phil Ochs: "Não pode enterrá-las. São boas demais. Já não lhe pertencem".
Patrimônio popular também são outras analisadas, como "Mississippi Goddam", de Nina Simone, que em 1964 se envolveu na luta de Malcolm X pelos direitos civis, enquanto "A Change is Gonna Come", de Sam Cooke, o fazia no discurso menos radical de Martin Luther King Jr., ou "White Riot" de The Clash, talvez a única banda punk dotada de certo heroísmo, ou, como dizia Joe Strummer: "Não tínhamos soluções para os problemas do mundo, mas tentamos pensar e nunca nos acomodamos".
The Clash deixa um legado poderoso para outras formações que são citadas, como U2, R.E.M., Manic Street Preachers e Billy Bragg, um estandarte do ativismo que sempre lutou contra a "retórica vazia" e que reconheceu que é preciso "ceder o testemunho ao público, porque só o público pode mudar o mundo, e não os cantores".
Seu reflexo norte-americano, pelo menos durante muito tempo, foi Steve Earle, foragido sem papas na língua do qual se inclui "John Walker's Blues", que tentava combater a paranoia patriótica nos EUA depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.
"As melhores canções políticas são telescópios que nos permitem ver uma parte da história", reflete Lynskey. Isso e algo mais, como dizia Billie Holiday quando cantava "Strange Fruit", que alguns promotores quiseram proibir, mas a diva tinha uma cláusula que lhe garantia o direito de cantá-la.
"Podia distinguir os imbecis entre o público. Eram os que aplaudiam quando eu acabava de cantá-la", dizia.
Victor Jara Foundation/Reuters
O cantor e compositor chileno 
Victor Jara está na lista
A única em castelhano: "Manifiesto", de Víctor Jara
Não estão todos os que são, mas são todos o que estão. De uma enxuta seleção de 33 canções, subentende-se que faltam muitas obras de criadores importantes na história da música popular. Lynskey sabe disso, e reconhece que se concentrou no mundo ocidental e na canção anglo-saxã, entre Reino Unido e EUA, mas nem por isso esqueceu o espaço exterior.
Incluem-se três canções fora desse limite: "War Ina Babylon", dos jamaicanos Max Romeo and the Upsetters; "Zombie", de Fela Kuti e Afrika 70, e "Manifiesto", de Víctor Jara.
"São composições que tiveram certo impacto no rock e no pop de nossas sociedades", explica.
Desta forma, o único rastro de canção em castelhano é o do cantor e compositor chileno mais internacional, assassinado pela ditadura de Pinochet após o golpe de Estado de 1973. "Morreu cantando. Foi vítima de uma década desoladora em seu país", aponta o escritor britânico.
Na Espanha, a tradição da canção de protesto pode ser encontrada desde a época da Guerra Civil, mas alguns de seus precursores mais conhecidos se registram nos anos 1950 e 60. Um deles é Chicho Sánchez Ferlosio, mas também há Paco Ibáñez, que musicou poetas espanhóis de todas as épocas; Raimon ou Mikel Laboa, cantando em basco.
Em uma geração posterior figuram Lluís Llach, Pi de la Serra, Joan Manuel Serrat, Patxi Andión, Labordeta e Javier Krahe, entre outros.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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