O EI expande-se não por degolar e praticar atos terroristas, mas porque propõe uma sinistra plataforma de valores
Daniel Aarão Reis - O Globo
“Oito irmãos, com explosivos e fuzis, alvejaram vários pontos na capital das abominações e das perversões, a cidade que desfralda a bandeira da Cruz na Europa”. A frase constou do comunicado do Estado Islâmico, vangloriando-se das ações desfechadas em Paris na noite do último dia 13 de novembro.
Os ataques mataram 130 pessoas e feriram 350, 97
ainda em estado grave. Mas foi bonito ver o movimento de solidariedade
às vítimas e aos que fugiam da barbárie. Nos dias seguintes, a volta aos
bistrôs mostrava que o medo não poderia predominar.
A cidade, traumatizada, revivia.
Os atentados reatualizaram a questão da destruição do terrorismo internacional. Mas, para que isto aconteça, não bastam hinos guerreiros, fechar fronteiras ou culpar multidões de refugiados. Não servirá o jogo do “choque das civilizações”, imaginado por Samuel Huntington, retomado, em chave invertida, pelo terror. Ou a islamofobia. Ou restringir a liberdade em nome de sua defesa e capitular frente ao fascismo que cresce na Europa, nutrido pelo pavor.
Uma análise das políticas adotadas desde setembro de 2001 evidencia que armas e bombas nada resolverão. As estatísticas das vítimas do terror (não computado o terrorismo de Estado com seus bombardeios indiscriminados) registram ascensão contínua, intensificada depois da aventura militar americana no Iraque em 2003. Entre mortos e feridos, 14.129 pessoas em 2001; 22.672 em 2011; 84.408 em 2015. Quanto mais bombas, mais terror, é o que dizem as evidências. “É preciso abrir os olhos para elas”, aconselha Jack Lang.
As invasões no Afeganistão e no Iraque, combinadas com as guerras civis na Líbia e na Síria, subverteram toda a região numa velocidade fulminante. A primavera árabe pareceu, em certo momento, abrir horizontes construtivos, mas a maturação de suas propostas democráticas, se que é se realizarão algum dia, ainda demandará tempo.
No contexto de desagregação de quatro estados (Iraque, Afeganistão, Síria e Líbia), estabelecidos há décadas, com vários outros sob ameaça de deslocamento (Iêmen, Jordânia, Arábia Saudita, Turquia), instaurou-se um ambiente de caos, e o Estado Islâmico é um dos seus muitos produtos e fatores, como demonstrou Pierre-Jean Luizard. Para superar a ameaça do terror, argumenta, é preciso compreender a história do Estado Islâmico e sua capacidade de atração.
Seu poder, apoiado em bem organizada propaganda, corresponde a demandas concretas: a defesa dos sunitas, sobretudo no Iraque, ex-opressores, agora oprimidos e massacrados pelas maiorias xiitas; a organização administrativa do território em associação com chefias locais; o questionamento das partilhas coloniais e das fronteiras impostas desde a desagregação do Império Otomano, nos anos 1920; a retomada de uma proposta identitária e, por isso mesmo, de alcance pan-árabe e pan-islamista — que transforma o Estado Islâmico em motivo de orgulho para milhões de muçulmanos em vários continentes. Estima-se que cerca de um terço dos seus combatentes seja de proveniência estrangeira: iemenitas, jordanianos, chechenos, franceses, ingleses, belgas... Basta olhar a mancha geográfica de sua atual influência, espalhando-se por países muçulmanos da África e da Ásia central. Sem contar as células “adormecidas” e os “lobos solitários” na Europa, à espera de instruções para entrarem em ação.
Trata-se de um processo histórico e cultural, irredutível a uma simples solução militar. O Estado Islâmico expande-se não por degolar e praticar atos terroristas, mas porque propõe uma sinistra plataforma de valores, um modo de existência alternativo, que não resumem o Islã, mas constituem uma vertente desta religião, potencializada pelas condições concretas onde se encontra. Tais valores só poderão ser vencidos e superados por outros valores.
Assim aconteceu nas Primeira e Segunda Guerras mundiais, vencidas em nome de promessas — a paz, a autodeterminação dos povos, a democracia, a justiça, a prosperidade. Depois das vitórias, quantas vezes tais valores foram pisoteados, em nome das altas razões de Estado e dos baixos interesses econômicos?
Que valores propor em aliança com a Arábia Saudita, que lapida mulheres e chicoteia oposicionistas acusados por delitos de opinião? Com o governo russo, carniceiro da Chechênia? Com o atual ditador egípcio, coveiro da primavera egípcia? Com as elites do Qatar, dos Emirados Árabes e do Kuwait, financiadoras do Estado Islâmico?
Enquanto um programa construtivo e convincente não for proposto, baseado em alianças congruentes, podem-se enviar todas as bombas do mundo e mesmo exterminar os 30 mil homens do Estado Islâmico. Não vai adiantar: o terrorismo renascerá. Pela razão enunciada na metáfora brechtiana: porque o ventre que o gerou continuará fecundo de desesperados, que preferem à alegria da vida a cultura da morte e a destruição de Paris.
A cidade, traumatizada, revivia.
Os atentados reatualizaram a questão da destruição do terrorismo internacional. Mas, para que isto aconteça, não bastam hinos guerreiros, fechar fronteiras ou culpar multidões de refugiados. Não servirá o jogo do “choque das civilizações”, imaginado por Samuel Huntington, retomado, em chave invertida, pelo terror. Ou a islamofobia. Ou restringir a liberdade em nome de sua defesa e capitular frente ao fascismo que cresce na Europa, nutrido pelo pavor.
Uma análise das políticas adotadas desde setembro de 2001 evidencia que armas e bombas nada resolverão. As estatísticas das vítimas do terror (não computado o terrorismo de Estado com seus bombardeios indiscriminados) registram ascensão contínua, intensificada depois da aventura militar americana no Iraque em 2003. Entre mortos e feridos, 14.129 pessoas em 2001; 22.672 em 2011; 84.408 em 2015. Quanto mais bombas, mais terror, é o que dizem as evidências. “É preciso abrir os olhos para elas”, aconselha Jack Lang.
As invasões no Afeganistão e no Iraque, combinadas com as guerras civis na Líbia e na Síria, subverteram toda a região numa velocidade fulminante. A primavera árabe pareceu, em certo momento, abrir horizontes construtivos, mas a maturação de suas propostas democráticas, se que é se realizarão algum dia, ainda demandará tempo.
No contexto de desagregação de quatro estados (Iraque, Afeganistão, Síria e Líbia), estabelecidos há décadas, com vários outros sob ameaça de deslocamento (Iêmen, Jordânia, Arábia Saudita, Turquia), instaurou-se um ambiente de caos, e o Estado Islâmico é um dos seus muitos produtos e fatores, como demonstrou Pierre-Jean Luizard. Para superar a ameaça do terror, argumenta, é preciso compreender a história do Estado Islâmico e sua capacidade de atração.
Seu poder, apoiado em bem organizada propaganda, corresponde a demandas concretas: a defesa dos sunitas, sobretudo no Iraque, ex-opressores, agora oprimidos e massacrados pelas maiorias xiitas; a organização administrativa do território em associação com chefias locais; o questionamento das partilhas coloniais e das fronteiras impostas desde a desagregação do Império Otomano, nos anos 1920; a retomada de uma proposta identitária e, por isso mesmo, de alcance pan-árabe e pan-islamista — que transforma o Estado Islâmico em motivo de orgulho para milhões de muçulmanos em vários continentes. Estima-se que cerca de um terço dos seus combatentes seja de proveniência estrangeira: iemenitas, jordanianos, chechenos, franceses, ingleses, belgas... Basta olhar a mancha geográfica de sua atual influência, espalhando-se por países muçulmanos da África e da Ásia central. Sem contar as células “adormecidas” e os “lobos solitários” na Europa, à espera de instruções para entrarem em ação.
Trata-se de um processo histórico e cultural, irredutível a uma simples solução militar. O Estado Islâmico expande-se não por degolar e praticar atos terroristas, mas porque propõe uma sinistra plataforma de valores, um modo de existência alternativo, que não resumem o Islã, mas constituem uma vertente desta religião, potencializada pelas condições concretas onde se encontra. Tais valores só poderão ser vencidos e superados por outros valores.
Assim aconteceu nas Primeira e Segunda Guerras mundiais, vencidas em nome de promessas — a paz, a autodeterminação dos povos, a democracia, a justiça, a prosperidade. Depois das vitórias, quantas vezes tais valores foram pisoteados, em nome das altas razões de Estado e dos baixos interesses econômicos?
Que valores propor em aliança com a Arábia Saudita, que lapida mulheres e chicoteia oposicionistas acusados por delitos de opinião? Com o governo russo, carniceiro da Chechênia? Com o atual ditador egípcio, coveiro da primavera egípcia? Com as elites do Qatar, dos Emirados Árabes e do Kuwait, financiadoras do Estado Islâmico?
Enquanto um programa construtivo e convincente não for proposto, baseado em alianças congruentes, podem-se enviar todas as bombas do mundo e mesmo exterminar os 30 mil homens do Estado Islâmico. Não vai adiantar: o terrorismo renascerá. Pela razão enunciada na metáfora brechtiana: porque o ventre que o gerou continuará fecundo de desesperados, que preferem à alegria da vida a cultura da morte e a destruição de Paris.
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