Na guerra contra o terrorismo, desvios só tendem a se multiplicar
Dorrit Harazim - O Globo
Pouca
atenção se prestou à notícia divulgada esta semana sobre mercenários
latino-americanos atuando no Iêmen a serviço dos Emirados Árabes Unidos
(EAU). Compreende-se. São guerras em demasia para acompanhar. E com
protagonistas bélicos da musculatura e retórica de um Vadimir Putin,
François Hollande, Barack Obama ou Recep Erdogan, a existência de uma
brigada de 1.800 latino-americanos suando no deserto empalidece.
Contudo, a notícia é relevante para se entender o faroeste global em que vivemos. Guerreiros de aluguel existem desde a Idade Média, contratados por monarcas ou cidades-estado, poderosos e papas. Só foram perdendo utilidade com a formação das nações-estado e a criação dos exércitos a serviço da pátria. Ressurgiram com força em tempos recentes depois que muitos países aboliram o serviço militar obrigatório.
Os Estados Unidos, por exemplo, foram buscar no setor militar privado metade do pessoal deslocado para a zona de combate no Iraque. No Afeganistão, essa proporção já está mais próxima dos 70%. Também a Nigéria recorre a mercenários para enfrentar o grupo terrorista Boko Haram e a Arábia Saudita paga sudaneses para lutar no Iêmen. Há quem garanta a presença de combatentes de aluguel atuando na Ucrânia, sob contrato da Rússia. Além disso, a indústria militar privada protege oficialmente empresas petrolíferas em zonas de conflito e faz as vezes de escudo bélico ou policialesco em países onde forças regulares são omissas, escassas ou sem apetite para morrer.
É o caso dos sete Emirados Árabes Unidos, cuja população é rarefeita e tem em Abu Dhabi e Dubai as vitrines mais ofuscantes de seus petrodólares. Segundo o “New York Times”, data de 2010 a fundação da primeira base a abrigar e treinar tropas estrangeiras de aluguel. Essa legião estrangeira incluiria panamenhos, salvadorenhos e chilenos, mas, ao que se saiba, nenhum brasileiro por enquanto. Os mais eficazes seriam os colombianos, pela experiência de décadas de enfrentamento com a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias (Farc) de seu país. Egressos do Exército colombiano regular, embolsam nos Emirados um salário de cinco a dez vezes maior do que o soldo que recebiam em casa.
“A indústria militar privada tornou-se global, legitimada pelos Estados Unidos”, explica o americano Sean McFade, autor de “O mercenário moderno”, “e a contratação de latino-americanos sinaliza para onde caminham as guerras”. McFade serviu na 82ª Divisão Aerotransportada do Exército americano antes de migrar para a Dyn Corporation International, uma das maiores do setor privado.
Conhece bem os dois lados, portanto, e se insurge contra a péssima reputação do setor. Meio ano atrás, quatro seguranças da temida Blackwater, cuja extensa folha corrida de abusos obrigou-a a mudar de nome para Academi, foram condenados a 30 anos de prisão por terem assassinado 17 civis iraquianos em Bagdá, no ano de 2007. Estavam a serviço das tropas americanas, e sua condenação nos tribunais dos Estados Unidos foi recebida com alívio pelos liberais.
Dois anos antes, porém, ocorrera outro tenebroso massacre, também no Iraque, só que praticado por um esquadrão da 1ª Divisão de Fuzileiros Navais dos EUA. Eles teriam surtado com a morte de um companheiro explodido por uma mina em Haditha, e se puseram a vingá-lo. Ali, na hora.
Primeiro fuzilaram os cinco pedestres mais próximos. Em seguida, foram de casa em casa e assassinaram outros 19 civis, alguns com vários disparos à queima-roupa. Entre as vítimas, de 3 a 76 anos de idade, havia um cadeirante.
Julgados em tribunais do Pentágono, todos os envolvidos no massacre foram inocentados — exceto um, penalizado com redução da patente e corte no soldo. Conclusão do ex-soldado, ex-mercenário e ex-aluno de Harvard Sean McFate: decorridas quase duas décadas de guerras coalhadas de abusos, nenhum oficial americano até hoje recebeu pena severa.
Há, porém, um aspecto mais sombrio do que a aplicação de códigos de honra, justiça e ética distintos para membros das Forças Armadas e “terceirizados”: o fato de práticas comumente atribuídas a mercenários terem contaminado as fileiras dos exércitos regulares. Nesta guerra global contra o terrorismo que a revista “Foreign Policy” define como “custosa, autoperpetuante, sem rumo e sem fim”, os desvios só tendem a se multiplicar.
Na França recém-saída dos múltiplos atentados terroristas de duas semanas atrás, registra-se um surto de fervor patriótico. As filas de jovens nos postos de recrutamento quintuplicaram: a média de 300 voluntários antes da sexta-feira 13 saltou para 1.500 por dia. Afirmam que o inimigo a abater é o Estado Islâmico, mas poucos saberiam definir o que é, onde fica, o que quer e como vencer esse inimigo. Pior: seus comandantes e o chefe da nação também tateiam.
Saudade dos tempos igualmente ferozes, porém mais simples, da Guerra Civil espanhola. Quisera o mundo de hoje ser tão compreensível como o descrito por George Orwell em “Homenagem a Catalunha”, no qual o escritor relata seu engajamento naquele conflito de ideais do final dos anos 1930. Para lá acorreu uma legião estrangeira desarmada com apenas uma certeza na cabeça: a de se juntar à “luta do povo contra a tirania”. “Era a única coisa concebível a fazer”, escreveu o autor.
Eles vieram de todos os cantos do mundo, trazendo seus nomes consagrados — além de Orwell, Arthur Koestler, André Malraux, John dos Passos, Ernest Hemingway, entre tantos outros. Chegaram e pegaram em armas por uma causa.
Todos, em graus variados, emergirem da luta profundamente desiludidos com o que testemunharam nas próprias fileiras. Orwell nunca se arrependeu de ter combatido, apesar da desilusão com o comunismo e do tiro que lhe furou a nuca e por pouco atingiu a carótida.
No atual faroeste de alianças letais e interesses mercenários, é torcer para que esse estado de guerra permanente e sem fronteiras não engula uma geração a mais da que já engoliu.
Contudo, a notícia é relevante para se entender o faroeste global em que vivemos. Guerreiros de aluguel existem desde a Idade Média, contratados por monarcas ou cidades-estado, poderosos e papas. Só foram perdendo utilidade com a formação das nações-estado e a criação dos exércitos a serviço da pátria. Ressurgiram com força em tempos recentes depois que muitos países aboliram o serviço militar obrigatório.
Os Estados Unidos, por exemplo, foram buscar no setor militar privado metade do pessoal deslocado para a zona de combate no Iraque. No Afeganistão, essa proporção já está mais próxima dos 70%. Também a Nigéria recorre a mercenários para enfrentar o grupo terrorista Boko Haram e a Arábia Saudita paga sudaneses para lutar no Iêmen. Há quem garanta a presença de combatentes de aluguel atuando na Ucrânia, sob contrato da Rússia. Além disso, a indústria militar privada protege oficialmente empresas petrolíferas em zonas de conflito e faz as vezes de escudo bélico ou policialesco em países onde forças regulares são omissas, escassas ou sem apetite para morrer.
É o caso dos sete Emirados Árabes Unidos, cuja população é rarefeita e tem em Abu Dhabi e Dubai as vitrines mais ofuscantes de seus petrodólares. Segundo o “New York Times”, data de 2010 a fundação da primeira base a abrigar e treinar tropas estrangeiras de aluguel. Essa legião estrangeira incluiria panamenhos, salvadorenhos e chilenos, mas, ao que se saiba, nenhum brasileiro por enquanto. Os mais eficazes seriam os colombianos, pela experiência de décadas de enfrentamento com a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias (Farc) de seu país. Egressos do Exército colombiano regular, embolsam nos Emirados um salário de cinco a dez vezes maior do que o soldo que recebiam em casa.
“A indústria militar privada tornou-se global, legitimada pelos Estados Unidos”, explica o americano Sean McFade, autor de “O mercenário moderno”, “e a contratação de latino-americanos sinaliza para onde caminham as guerras”. McFade serviu na 82ª Divisão Aerotransportada do Exército americano antes de migrar para a Dyn Corporation International, uma das maiores do setor privado.
Conhece bem os dois lados, portanto, e se insurge contra a péssima reputação do setor. Meio ano atrás, quatro seguranças da temida Blackwater, cuja extensa folha corrida de abusos obrigou-a a mudar de nome para Academi, foram condenados a 30 anos de prisão por terem assassinado 17 civis iraquianos em Bagdá, no ano de 2007. Estavam a serviço das tropas americanas, e sua condenação nos tribunais dos Estados Unidos foi recebida com alívio pelos liberais.
Dois anos antes, porém, ocorrera outro tenebroso massacre, também no Iraque, só que praticado por um esquadrão da 1ª Divisão de Fuzileiros Navais dos EUA. Eles teriam surtado com a morte de um companheiro explodido por uma mina em Haditha, e se puseram a vingá-lo. Ali, na hora.
Primeiro fuzilaram os cinco pedestres mais próximos. Em seguida, foram de casa em casa e assassinaram outros 19 civis, alguns com vários disparos à queima-roupa. Entre as vítimas, de 3 a 76 anos de idade, havia um cadeirante.
Julgados em tribunais do Pentágono, todos os envolvidos no massacre foram inocentados — exceto um, penalizado com redução da patente e corte no soldo. Conclusão do ex-soldado, ex-mercenário e ex-aluno de Harvard Sean McFate: decorridas quase duas décadas de guerras coalhadas de abusos, nenhum oficial americano até hoje recebeu pena severa.
Há, porém, um aspecto mais sombrio do que a aplicação de códigos de honra, justiça e ética distintos para membros das Forças Armadas e “terceirizados”: o fato de práticas comumente atribuídas a mercenários terem contaminado as fileiras dos exércitos regulares. Nesta guerra global contra o terrorismo que a revista “Foreign Policy” define como “custosa, autoperpetuante, sem rumo e sem fim”, os desvios só tendem a se multiplicar.
Na França recém-saída dos múltiplos atentados terroristas de duas semanas atrás, registra-se um surto de fervor patriótico. As filas de jovens nos postos de recrutamento quintuplicaram: a média de 300 voluntários antes da sexta-feira 13 saltou para 1.500 por dia. Afirmam que o inimigo a abater é o Estado Islâmico, mas poucos saberiam definir o que é, onde fica, o que quer e como vencer esse inimigo. Pior: seus comandantes e o chefe da nação também tateiam.
Saudade dos tempos igualmente ferozes, porém mais simples, da Guerra Civil espanhola. Quisera o mundo de hoje ser tão compreensível como o descrito por George Orwell em “Homenagem a Catalunha”, no qual o escritor relata seu engajamento naquele conflito de ideais do final dos anos 1930. Para lá acorreu uma legião estrangeira desarmada com apenas uma certeza na cabeça: a de se juntar à “luta do povo contra a tirania”. “Era a única coisa concebível a fazer”, escreveu o autor.
Eles vieram de todos os cantos do mundo, trazendo seus nomes consagrados — além de Orwell, Arthur Koestler, André Malraux, John dos Passos, Ernest Hemingway, entre tantos outros. Chegaram e pegaram em armas por uma causa.
Todos, em graus variados, emergirem da luta profundamente desiludidos com o que testemunharam nas próprias fileiras. Orwell nunca se arrependeu de ter combatido, apesar da desilusão com o comunismo e do tiro que lhe furou a nuca e por pouco atingiu a carótida.
No atual faroeste de alianças letais e interesses mercenários, é torcer para que esse estado de guerra permanente e sem fronteiras não engula uma geração a mais da que já engoliu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário