domingo, 3 de janeiro de 2016

As primárias americanas, um fracasso político
Sam Tanenhaus - Prospect
Mark J. Terrill/AP
Pré-candidato republicano à Presidência dos EUA, Ben Carson (à dir.) observa o rival Donald Trump durante debatePré-candidato republicano à Presidência dos EUA, Ben Carson (à dir.) observa o rival Donald Trump durante debate
Os observadores da política americana –incluindo Martin Walker, que por muitos anos escreveu uma coluna sobre Washington para a revista "Prospect"– gostam de dizer que temos o presidente que merecemos.
Nosso monarca por mandato limitado, popularmente eleito, também é um espelho, mesmo que turvo, da alma da nação –ou melhor, dos cerca de 6 entre 10 eleitores registrados que se dão ao trabalho de votar nas eleições presidenciais dos EUA, enquanto os demais permanecem em casa.
A proporção é ainda pior na maratona pré-eleitoral das eleições primárias. Em 2016, a escolha terá início em 1º de fevereiro, em Iowa, seguido por New Hampshire, em 9 de fevereiro. Ambos são Estados pequenos, cuja população somada, cerca de 4,4 milhões, não chega a um sétimo da população da Califórnia. E, com sorte, cerca de 900 mil deles votarão.
Um terceiro Estado, a Carolina do Sul, realizará suas primárias cruciais em 20 de fevereiro. A essa altura, os líderes na disputa já estarão estabelecidos em ambos os partidos, enquanto outros ficarão para trás ou até mesmo desistirão –tudo isso baseado no que menos de 1% da população pensa em Estados que não são exatamente os roteiros para a América do século 21.
Iowa e New Hampshire são predominantemente rurais e mais de 90% da população é branca. A Carolina do Sul retirou a bandeira confederada de seu Legislativo estadual em meados deste ano, depois de um massacre de afro-americanos em uma igreja em Charleston.
Isso gera uma questão inevitável: essa é a forma de escolher um presidente? Muitos pensam que não.
"A disputa das primárias, em qualquer nível, é a contribuição mais original da América à arte da democracia", escreveu o jornalista e escritor Theodore H. "Teddy" White em "Como se Faz um Presidente da República", de 1961, o primeiro de sua série indispensável de narrativas de campanha.
Também é, ele acrescentou, "a forma de arte mais profanamente vilipendiada e intensamente odiada por todo profissional que pratica a política como ofício". Nenhum outro exercício divide cada partido contra si mesmo e fornece tanta munição para o outro lado.
Mas disrupção é o sentido. As primárias presidenciais começaram como uma reação aos chefes de partido cínicos, que se reuniam a cada quatro anos para ungir um ou outro medíocre flexível para representar o partido e deixar intocado seu sistema parcialmente oculto de espólios. A primária presidencial "direta", introduzida em Wisconsin na eleição de 1912, recolocou os eleitores no controle.
Os "cidadãos sólidos que se tornam fazedores sazonais de reis" em Iowa e New Hampshire são notoriamente difíceis de impressionar, por estarem acostumados a avaliar os candidatos de perto, nas salas de estar e cafés. Alguns políticos adoram esse teste de produto "no varejo". Outros repudiam.
Mas o drama está em outra parte, na possibilidade da campanha como incêndio florestal, a explosão repentina da política como movimento social. Isso aconteceu em 1964, quando Barry Goldwater, o libertário do Arizona, conquistou a indicação republicana. Aconteceu em 1968, quando Eugene McCarthy, o tribuno dos protestos universitários contra a guerra, destituiu o presidente Lyndon B. Johnson.
E aconteceu de novo em 1972, quando o progressista George McGovern liderou uma insurreição clássica que foi uma "obra-prima de guerra partidária", maravilhou-se White na época, "com suas tropas vivendo da terra, explorando os veios de frustração em toda parte (...) comandando e criando uma rede de células em lojas, adegas, campi, cozinhas".
Todos os três foram empolgantes, históricos, em certos momentos até heróicos. Mas cada tribuno prejudicou seu próprio partido, que foi derrotado na eleição presidencial quando a "maioria silenciosa", invisível, de moderados e independentes finalmente se manifestou.
A ironia é que o sistema das primárias, criado para eliminar os enganadores e ranzinzas, se transformou em um novo espaço para eles. E está piorando. Uma nova maçonaria de chefes, não líderes de partido, mas membros da autônoma "classe dos doadores", podem dar sobrevida a um candidato em dificuldades –ou desgastar um candidato fraco na liderança– ao despejarem milhões não regulamentados por meio dos comitês de ação política.
Em 2012, o insurgente Newt Gingrich parecia estar em suporte de vida, mas uma transfusão de US$ 20 milhões pelo bilionário dono de cassinos Sheldon Adelson o transformou em uma força. Gingrich não impressionou os eleitores, mas seu ataque impiedoso a Mitt Romney nas propagandas de televisão ajudou indiretamente o presidente Barack Obama.
O potencial de prejuízo é ainda maior em 2016. Os democratas não estão preocupados. Eles têm uma favorita com autoridade em Hillary Clinton, que parece estar consolidando as facções do partido.
Mas o que resta do "establishment" republicano está tentando desesperadamente rechaçar o bilionário autofinanciado Donald Trump e o bem financiado "conservador corajoso" Ted Cruz. Ambos têm explorado habilmente as ansiedades e preconceitos de uma base republicana cujos velhos fervores anti-imigrantes, antimuçulmanos e antigoverno foram alimentados pela crescente ameaça de violência terrorista em casa e no exterior.
Em um clima como esse, o risco do sistema de primárias diretas não é de que não funcionará, mas que funcionará bem demais, com o eleitor agitado, cortejado e adulado, começando a pensar em si mesmo não como um fazedor de reis, mas como o próprio rei, e a considerar os demais cidadãos como súditos –ou inimigos.
Tradução: George El Khouri Andolfato

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