Philippe Huguen - 6.nov.2015/AFP
Sudanês aguarda em acampamento para imigrantes africanos em Calais, na FrançaSudanês aguarda em acampamento para imigrantes africanos em Calais, na França
Ele atravessou as vastas planícies na fronteira a pé, há mais de um ano. Quando entrou no Sudão, foi apanhado pela patrulha de fronteiras e enviado a um campo de refugiados superlotado, que existe há décadas, onde passou um mês. De lá, após pagar o equivalente a R$ 2.000,00, foi colocado em uma caminhonete com outros 17 e levado à capital, onde trabalhou durante meses em uma lanchonete tentando ser discreto, ou, como ele diz, "deixando esfriar".
Então ele se preparou para a próxima etapa: a Líbia.
"Sei que é perigoso, mas sou obrigado a fazer isso", disse com nervosismo Yusuf Muhammad, 27, um migrante da Eritreia em Cartum (Sudão). "Não tenho opção. Quero ir para a Europa ou os EUA."
Milhares de migrantes e refugiados, especialmente das vizinhas Etiópia e Eritreia, chegam ao Sudão todos os anos. Muitos vêm com planos de ganhar algum dinheiro e se ligar a redes de contrabando, o que faz de Cartum um grande trampolim para migrantes que rumam para o Mediterrâneo e, finalmente, a Europa.
"Tem gente que chega aqui com o único objetivo de se mudar, ficar por alguns meses, trabalhar, ganhar dinheiro e ir embora", disse Renata Bernardo, coordenadora de projeto na Organização Internacional para Migração em Cartum.
Os migrantes e refugiados dizem que estão escapando das duras realidades políticas ou econômicas de seus países, às vezes ambos. Na Eritreia, tortura, execuções extrajudiciais, desaparecimentos, trabalho forçado e violência sexual são generalizados e sistemáticos, segundo a ONU, juntamente com um sistema de recrutamento militar indefinido.
"A vida é realmente difícil na Eritreia, não há liberdade nem trabalho", disse Muhammad.

Pobreza e repressão

A Etiópia ostenta um rápido crescimento econômico, mas os benefícios não são sentidos amplamente pela população. Mais de dois terços vivem em severa pobreza, segundo o Programa de Desenvolvimento da ONU. O governo é muito criticado pela repressão política e os abusos aos direitos humanos.
Tasew Taero, 33, disse que era um estudante universitário na Etiópia, da região de Oromia. A inquietação política em sua região provocou uma forte repressão. Ele foi preso e torturado, apesar de não estar envolvido em ativismo, segundo disse, por isso decidiu partir.
Depois de viajar durante um mês e pagar aos contrabandistas US$ 350, ele chegou a Cartum há dois anos. Agora espera a oportunidade de ir para a Líbia.
"Se tiver uma chance, irei", disse. "Quando eu tiver o dinheiro."
Mesmo depois de dois anos, alguns o consideram um imigrante recente aqui. Há décadas o leste do Sudão abriga refugiados dos dois países. A guerra de independência da Eritreia, que durou décadas, trouxe dezenas de milhares de pessoas para cá, assim como as disputas políticas em partes da Etiópia.
Enquanto muitos se acostumaram a uma vida de desafios no Sudão, muitos de seus filhos hoje procuram melhores oportunidades em outros lugares.
"O Sudão sempre esteve na encruzilhada de rotas migratórias, para refugiados e migrantes", disse Angela Li Rosi, vice-representante da Comissão para Refugiados da ONU no Sudão.
Ghere Abraham, 45, é um refugiado eritreu que vive no Sudão há quase 30 anos. Um vídeo de combatentes do Estado Islâmico na Líbia assassinando migrantes eritreus e etíopes este ano o enojou. Duas das pessoas mortas no vídeo viviam em seu bairro em Cartum.
Na noite de abril em que o vídeo foi divulgado, ele foi à igreja no bairro onde se prestavam condolências. Isso também lhe lembrou o que poderia ter acontecido com sua filha mais velha, que recentemente tentou cruzar o Saara até o Mediterrâneo na esperança de chegar à Europa. Ele conseguiu detê-la em tempo, depois de ameaçar matar a pessoa que a pôs em contato com os contrabandistas.
"Eu chorei quando a vi", disse ele. Sua filha, Hiweit Abraham, 20, falou em resmungos sobre os acontecimentos, sem se arrepender da tentativa de partir.
"Eu não tenho vida, nem respeito, não há nada que eu possa fazer aqui", disse. "Porque sou uma refugiada."
Mustafa Ismail Abdalla, 25, cresceu no Sudão. Seu pai era um ativista político da Frente Oromo de Libertação, um grupo rebelde da Etiópia rotulado como organização terrorista por seu governo. Mas sua vida é de trabalho, desde os 8 anos de idade, e hoje conjuga três empregos. "Alguns de meus amigos partiram há alguns meses e hoje estão na França", disse ele. "Eu só preciso de um pouco mais de dinheiro e irei."
A temporada de partidas é de fevereiro a outubro, quando as águas no Mediterrâneo tendem a estar mais calmas, segundo os migrantes. Os contrabandistas têm listas de espera, e muitos viajantes enfrentam os perigos de detenção, surras, abuso e ataque sexual no deserto.

Lista de espera

Enquanto a maioria dos migrantes que rumam para a Líbia são da Eritreia e da Etiópia, um número crescente é de sudaneses, especialmente de Darfur, assim como sírios e até paquistaneses e nigerianos que viajam até o Mediterrâneo via Sudão. Aqui eles contatam os passadores por meio de intermediários, que partem para o deserto de pontos de encontro na capital que mudam para não ser detectados.
"Custa cerca de US$ 1.200 para chegar à Líbia", disse um contrabandista, Ali Ibrahim. "Os preços sobem e descem quando há problemas."
Dos arredores de Cartum, caminhonetes 4x4 com 20 a 30 "cabeças" percorrem o deserto no norte do Sudão até a fronteira líbia, onde eles são entregues a outro grupo de contrabandistas.
"Se você morrer no deserto, ninguém saberá", disse Ibrahim, relatando os riscos da viagem.
Na Líbia, os migrantes ficam em campos de contrabandistas. Os que não pagaram toda a tarifa têm de telefonar para suas famílias para conseguir o resto. Às vezes são cobrados pagamentos extra para libertar os migrantes que são feitos reféns.
"Há filhos que fogem, fazem acertos com os passadores e ligam para seus pais: 'Mamãe, estou em Bengazi'", disse Bernardo.
O governo sudanês está dando mais atenção à migração. No ano passado, o Parlamento aprovou uma lei contra tráfico humano e realizou uma conferência internacional para abordar o problema.
"Não temos experiência e estamos pedindo mais treinamento", disse Awad Dahia, o diretor de passaportes, imigração e registro civil no Ministério do Interior.
Mas alguns migrantes afirmam que as autoridades sudanesas estão envolvidas no comércio ilegal.
"Se houver evidências verossímeis contra qualquer pessoa, um policial ou uma autoridade do governo, a lei deve ser aplicada", disse Dahia.
Para os migrantes e refugiados que querem uma vida melhor e seguir adiante, existe uma discussão sobre a inutilidade dos riscos assumidos. Abraham, que disse temer que seu filho de 14 anos também tente partir, acredita que os riscos enfrentados pela geração mais jovem de refugiados e migrantes não valem a pena. "Eles procuram uma vida que não existe", disse ele.
Mas Taero, o ex-estudante universitário, acha que não há razão para ficar. "Não importa", disse ele. "Também estou morrendo aqui."
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves