terça-feira, 29 de março de 2016

Cizre, a "cidade mártir" dos curdos da Turquia
A cidade está sendo destruída pelos combates entre os separatistas do PKK e as forças de segurança turcas
Allan Kaval - Le Monde
Ilyas Akengin/AFP
Cidadãos observam danos em áreas de Cizre, em setembro de 2015, após ataques durante toque de recolher na cidadeCidadãos observam danos em áreas de Cizre, em setembro de 2015, após ataques durante toque de recolher na cidade
A partir da artéria principal de Cizre, as destruições sofridas pelo bairro de Cudi vão se revelando ao final de uma rua não asfaltada, um largo caminho de terra cortado em certos pontos por longas poças escuras. A lama, repleta de lixo e de cartuchos de calibre grosso, foi marcada pelas lagartas de veículos pesados, tanques e escavadeiras. De um lado e de outro vão surgindo as formas do que restou de prédios e de casas. Desde o dia 2 de março, os habitantes do bairro, que haviam fugido dos combates entre o PPK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e as forças de segurança turcas, foram autorizados a voltar para constatar o desastre, e a salvar aquilo que ainda podia ser salvo. Nas vias irreconhecíveis, algumas pessoas encontram o que restou de suas casas e procuram pertences que possam estar milagrosamente intactos.
Ahmet, um recém-casado que havia se refugiado em um vilarejo dos arredores, só encontrou um fosso rodeado por montículos indistintos de escombros no lugar da pequena casa para onde ele havia acabado de se mudar com sua mulher. Como única lembrança, só lhe restou uma fotografia na tela de seu celular. Mais adiante, diante do olhar de avós atordoadas, crianças escalam montes de cascalho e de metal, onde é possível distinguir as carcaças esmagadas de carros de família.
Quando as fachadas das construções ainda reconhecíveis não estão escurecidas por vestígios de incêndios, os buracos deixados pela passagem de projéteis revelam a intimidade abandonada de uma cozinha, de um banheiro ou de um quarto. Pendurado por um prego na parede de um cômodo estraçalhado, o retrato de um patriarca, de ar severo, ainda se encontra no lugar. Entre os escombros de uma casa arrasada se veem os restos de um alaúde gasto.

Verdadeira ratoeira

Cizre possuía 130 mil habitantes em dezembro de 2015. Implantado no dia 14 de dezembro, o toque de recolher permanente imposto para a cidade e as operações militares dirigidas pelas forças armadas turcas contra as posições do PKK expulsaram a maioria da população. Não há disponível nenhum balanço confiável dos combates que aconteceram aqui durante dois meses.
A vontade dos curdos de manterem a imprecisão sobre o número de baixas civis e de combatentes complica ainda mais sua avaliação, mas ele chegaria a pelo menos centenas de mortos. O estado de destruição de certos bairros atesta ainda a violência dos confrontos.
"Ninguém entende o que o PKK quis fazer em Cizre", afirma com um ar arrasado Youssouf (seu nome foi modificado), na sala carbonizada da casa de um parente, que um projétil de canhão atravessou de lado a lado. "Assim que eles começaram a se entrincheirar nos bairros, sabíamos que aquilo ia acabar mal, mas não podíamos falar nada."
Controlada por combatentes experientes, mas dependendo de jovens recrutas inexperientes em uma cidade cercada por colinas que constituem pontos de tiro para seus adversários, a insurreição conduzida pela rebelião curda em Cizre soa como um absurdo estratégico. Todos admitem que a cidade se transformou em uma ratoeira, onde a maior parte dos combatentes presentes foi dizimada.
Símbolo da nova doutrina insurrecional experimentada pelo PKK desde o verão em diversas cidades do sudeste de maioria curda da Turquia, Cizre caiu. As bandeiras turcas, penduradas nos esqueletos dos prédios mais altos, e as palavras de ordem pintadas com spray nos muros ainda de pé mostram a vontade dos vencedores de punir a cidade rebelde e seus habitantes. "Vocês estão vendo o poder do turco"" berra em letras garrafais vermelhas uma pichação que se estende sobre a porta de ferro de uma loja abandonada, enquanto em outras partes é possível ler: "Que felicidade é poder se dizer turco", ou ainda, na frente de casas demolidas: "Que bela limpeza..." e mais adiante "Defesa turco-islâmica".
Esses escritos, que misturam violentas obscenidades com uma escolha limitada de divisas islamitas e nacionalistas, muitas vezes são assinados por PÖH ou JÖH, que designam as unidades especiais da polícia e da gendarmaria turcas. Seus membros, que se tornaram donos da cidade, costumam percorrer as ruínas a bordo de imponentes veículos blindados. "Agora vivemos como um país estrangeiro sob ocupação turca. Não existe uma solução pacífica em vista", lamenta Kadir Kunur, o prefeito da cidade, afiliado à emanação legal do movimento curdo. De dentro do prédio da prefeitura de Cizre, aberto recentemente, ele declara não ter mais nenhuma relação com os representantes do Estado na cidade.
Contudo, para um oficial do PKK entrevistado sob condição de anonimato, a aniquilação de bairros inteiros de Cizre e o êxodo de sua população não tem nada de derrota. "A destruição da cidade e a brutalidade do Estado turco criarão um novo espírito de resistência. Aqueles cujos parentes morreram como mártires aqui serão incitados a pegar em armas, e o combate vai continuar. (...) Não questionaremos nossa estratégia depois de Cizre, outras cidades seguirão."

Incompreensão dos moradores

No dia 13 de março, as forças turcas anunciavam o início do cerco às cidades curdas de Nusaybin, Yüksekova e Sirnak, parcialmente controladas pelo PKK. Na mesma noite, em Ancara, a dois passos do lugar onde, no dia 17 de fevereiro, um atentado suicida, reivindicado por uma organização armada curda radical como a revanche dos habitantes de Cizre, tomou por alvo um comboio do ministério da Defesa, um novo ataque com carro-bomba provocou 37 mortes, seguido por intensos bombardeios aéreos turcos sobre as bases do PKK no Iraque.
Apesar da incompreensão dos habitantes em relação à estratégia urbana do PKK, que até hoje não resultou em nenhum ganho significativo, a extensão das destruições e a vontade do movimento curdo de passar a ideia de que houve um massacre nos porões onde os últimos sobreviventes civis e combatentes do bairro de Cudi teriam sido queimados vivos contribuem para alimentar a raiva das pessoas. Um dos subsolos, ao qual é possível ter acesso através de uma cavidade semelhante a uma cratera de bomba, se tornou um local de peregrinação e de memória. Na penumbra, perturbada pela luz dos celulares, o cheiro distinto dos cadáveres queimados preenche um ar pesado, carregado de poeira.
Sobre o chão, entre os escombros cobertos de cinzas, é possível ver marcas pretas e úmidas, exalando a morte e com a forma oblonga de silhuetas humanas. Os muitos que passam em silêncio por esse porão destroçado vão até lá para ver a carne dos mártires. Para eles, assim como para o movimento curdo, a natureza dos fatos que ocorreram em Cizre e nesse porão não importa mais. Não haverá investigação e, tanto na terra curda quanto em Ancara, somente os relatos contam. O que se constrói aqui é a história de um massacre, para o qual já se clama por vingança.

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