terça-feira, 3 de novembro de 2015

Características dos grupos armados podem ajudar a prever estupros em guerras
Elisabeth Jean Wood e Dara Kay Cohen
AP Photo/Militant Website/Arquivo
No ano passado, numa conferência mundial sobre violência sexual durante a guerra, muitos palestrantes concordaram que a melhor forma de impedir o estupro é julgar os culpados, e pediram que isso seja feito com mais frequência. Mas os processos não são suficientes. Temos de trabalhar para reduzir a violência sexual por parte de grupos armados durante as guerras, e não apenas agir depois.
Em primeiro lugar, precisamos compreender melhor o fenômeno. Embora o estupro durante a guerra seja um crime antigo, só na última década os cientistas sociais começaram a estudar os padrões dos estupros cometidos por soldados e rebeldes. Os resultados podem ser surpreendentes: a probabilidade não é maior em determinadas regiões, nem países com maior desigualdade de gênero ou durante conflitos étnicos; homens podem ser vítimas, e mulheres podem ser estupradoras.
Embora o estupro seja tragicamente comum em zonas de guerra, ele não é uma parte inevitável da guerra. Na verdade, descobrimos surpreendentemente que uma porcentagem significativa de Exércitos regulares e grupos rebeldes envolvidos em guerras civis recentes não foram acusados de estuprar civis. Isso porque os comandantes têm opções: eles podem optar por ordenar, tolerar ou proibir o estupro. Uma compreensão mais profunda de seu comportamento oferece a esperança de mitigar o problema.
Alguns comandantes ordenam o estupro como uma estratégia militar ou política, e especificam o alvo. Quando o Exército Soviético marchou para a Alemanha em 1945, os generais ordenaram aos soldados para se vingarem de todos os alemães, não apenas dos militares. Soldados guatemaltecos estupraram indígenas maias sistematicamente durante a guerra civil de 1960 a 1996. Hoje, as forças do Estado Islâmico obrigam mulheres e meninas Yadizi ao casamento e à escravidão sexual, o que acreditam, equivocadamente, ser legítimo de acordo com a lei islâmica.
Outros comandantes, mesmo quando não ordenam os estupros, toleram-no implícita ou explicitamente. E o estupro pode se tornar algo generalizado mesmo que não seja ordenado. Nestes casos, verificou-se que a motivação para o estupro muitas vezes vem de interações entre os soldados.
Ele pode refletir a frustração dos soldados ao lutar contra um inimigo difícil de vencer, como foi para as unidades de soldados norte-americanos que estupraram civis vietnamitas na década de 1960. Ele também pode ser uma forma de pagamento, como para os soldados congoleses que dizem estuprar por raiva dos salários baixos que os impedem de alcançar os ideais masculinos, como sustentar uma família. O estupro coletivo, em especial, pode permitir que soldados que foram recrutados à força criem laços de amizade e lealdade entre si, como relataram homens e mulheres integrantes da Frente Revolucionária Unida de Serra Leoa.
Por fim, alguns comandantes proíbem o estupro por parte de seus soldados. No Sri Lanka, os Tigres Tamis, embora violentos durante sua insurgência nos anos 80 e 90, monitoravam de perto seus soldados e puniam brutalmente os poucos que estupravam. Em El Salvador na década de 1980, os comandantes da Frente de Libertação Nacional Farabundo Martí exigiram que seus combatentes frequentassem aulas que enfatizavam que a ideologia marxista do grupo proibia o abuso de civis. O estupro já não era comum, mas depois das aulas, praticamente acabou. Apesar de tanto as Forças de Defesa de Israel quanto os grupos militantes palestinos cometerem outros atos de violência, o estupro tem sido extremamente raro nos últimos anos.
Ao contrário de uma bala perdida, o estupro é sempre intencional --seja ordenado pelos comandantes ou partindo dos soldados. Esse simples fato significa que há muita coisa que militares e líderes de grupos insurgentes, ONGs e agências governamentais podem fazer para mitigá-lo.
Para combater o estupro durante a guerra, a comunidade internacional tem se concentrado fortemente em aumentar o número de julgamentos. A instauração de processos é importante porque confirma para os sobreviventes que o estupro é um crime e uma injustiça. Mas os promotores muitas vezes procuram provas de uma ordem explícita. Isto deixa de fora os comandantes que toleram os estupros, mesmo que não os tenham ordenado. Eles também devem ser responsabilizados. Além disso, os processos são insuficientes. Os julgamentos são muito caros, lentos e ainda de pequeno alcance. E há poucas evidências de que eles tenham um efeito dissuasivo.
Em vez disso, precisamos trabalhar para evitar o estupro durante os conflitos. Para fazer isso, devemos entender as características específicas dos grupos armados --sua ideologia, sua moral e suas leis, bem como a forma como os comandantes recrutam, disciplinam e pagam os soldados-- que podem ajudar a prever se um grupo vai estuprar, e como.
Pesquisadores descobriram que as organizações que recrutam por sequestro são muito mais propensas a cometer estupro coletivo generalizado do que aquelas que não o fazem. Grupos que torturam presos também são mais propensos a se envolver em violência sexual. Essas características, se melhor compreendidas, podem servir como sinais de alerta para aqueles que querem impedir que os estupros aconteçam ou se agravem depois que já começaram.
Por exemplo, os Exércitos que estupram devem ser citados e humilhados publicamente, uma tática que, segundo as pesquisas, atenuou a gravidade dos genocídios e assassinatos patrocinados pelo Estado nas últimas décadas. Se um soldado é identificado como estuprador, ou um comandante é conhecido no mundo todo por tolerar os estupros, a vergonha e a ameaça às suas reputações podem dissuadir seus colegas --principalmente aqueles que buscam legitimidade internacional-- de estuprar.
Os países devem condicionar a ajuda e a transferências de armas de acordo com o histórico de direitos humanos dos grupos armados, e suspender ambos rapidamente caso os soldados sejam acusados de estuprar civis. E devem punir líderes de grupos armados que encomendam ou toleram os estupros, impondo sanções específicas como a proibição de viajar e o congelamento de bens. Essas opções podem convencer os líderes de grupos armados de que o custo do estupro é muito alto.
Essas táticas não vão funcionar com grupos como o Estado islâmico, que rejeitam o direito internacional e não dependem de financiamento externo. Em vez disso, os testemunhos de recrutas que desertaram podem ser exemplos fortes caso sejam divulgados amplamente. Além disso, muitos estudiosos muçulmanos ao redor do mundo têm rejeitado a interpretação que o Estado Islâmico faz de sua religião. Alguns jihadistas importantes chamaram-na até mesmo de "deturpada". Esses indivíduos têm a credibilidade que os políticos ocidentais não têm para criticar a ideologia do Estado Islâmico.
Graças ao trabalho corajoso de advogados e ativistas, o estupro não é mais "o segredo maior". Muitos sobreviventes do mundo inteiro o denunciam, apesar dos riscos significativos. O desafio hoje não é mais tornar visível um crime invisível. É aplicar o que se aprendeu nas últimas décadas para evitá-lo.
Tradutor: Eloise De Vylder 

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