“Comunidade” não é um eufemismo para “favela”, como propõe a linguagem politicamente correta, embora uma favela possa ser considerada um tipo de comunidade constituída de indivíduos de menor poder aquisitivo e abandonada pelo poder público.
Um mosteiro com monges dedicados à oração ou mafiosos reunidos para fins deletérios também são comunidades, não importando os laços que os unem nem os diferentes fins almejados por cada grupo.
Comunidade
é um grupo maior ou menor de indivíduos agrupados unicamente por
habitarem o mesmo lugar, como é o caso de um condomínio de casas ou de
apartamentos, e por estarem associados com vistas às mesmas finalidades.
No caso do
condomínio, há despesas de manutenção da área comum e, por isto mesmo,
os moradores, além da despesa de manutenção de suas particulares casas
ou apartamentos, têm também que arcar com as despesas da área comum.
É neste
sentido que podemos dizer que eles constituem uma comunidade, sem que
precisem manter relacionamentos pessoais uns com os outros, além
daqueles formais das reuniões de condomínio.
Comunidade
não é um sinônimo de sociedade. Quando muito, podemos dizer que uma
sociedade, como a nossa sociedade moderna, é um agregado de muitas
comunidades mantendo vínculos mais estreitos ou menos umas com as
outras.
Fazendo
uma analogia: um corpo humano é um todo composto de partes. Ele possui
vários órgãos. Estes, por sua vez, são compostos de células. Estas, por
sua vez, são compostas de três partes gerais: membrana celular,
citoplasma e núcleo.
Do mesmo modo, isto que chamamos de “sociedade” é também um todo composto de partes: comunidades, famílias e indivíduos.
Para
efeitos do pensamento que estamos tentando encaminhar, podemos tomar o
indivíduo humano como a unidade mínima de uma pequena comunidade: a
família básica. A sociedade, por sua vez, é uma agregação de famílias e
de comunidades.
Se nos concentrarmos na noção de “indivíduo”, a etimologia desta palavra poderá levar a mal-entendidos. Proveniente do latim individuum, esta palavra quer dizer “indivisível”. Mas como assim? Sabemos que um indivíduo, humano ou animal, se divide em partes?!
Ocorre que ele é, de fato, materialmente divisível, mas possui uma unidade substancial indivisível.
Um indivíduo humano esquartejado perde justamente essa unidade
substancial, de tal modo que não pode mais ser visto como uma pessoa
humana.
Uma pessoa
é um indivíduo humano dotado de identidade pessoal. Assim como suas
impressões digitais e as íris de seus olhos, ele é único em todo o
universo. Mas não somente por seus aspectos materiais, como também pelos
traços de sua personalidade e de seu caráter.
Advirto que emprego estes dois últimos termos não no sentido valorativo, como são frequentemente usados, mas, sim, no sentido descritivo em
que é correto dizer que todos os indivíduos humanos possuem
personalidade e caráter, não importando que este seja um mau caráter ou
uma personalidade apagada, um low profile.
A
identidade pessoal é um fator que nos acompanha da mais tenra infância
ao túmulo. Um indivíduo só a perde quando é acometido por algum
distúrbio mental.
Como é o
caso, por exemplo, de uma forte amnésia. Quando ela ocorre, o indivíduo
costuma desatar a fazer perguntas tais como: “Quem sou eu, onde estou,
para onde vou”? Fora isso, todo indivíduo humano é capaz de reconhecer a
si próprio.
Um ancião
passou por várias etapas de caráter biológico e psicológico ao longo de
sua vida. Mais ou menos de 7 em 7 anos, seu corpo, com todas as suas
células, morreu e ele adquiriu um novo corpo.
Mas há
algo que permaneceu em todas essas transformações: sua unidade
substancial enquanto este indivíduo e não outro, e sua identidade
pessoal. Tanto é assim que ele foi capaz de se reconhecer na infância,
na adolescência, na vida madura e continua sendo capaz de se reconhecer
na velhice.
Se não
houvesse uma unidade permanente nessa diversidade impermanente, como ele
seria capaz de se reconhecer a cada momento de sua vida?
A identidade pessoal é um tipo de identidade na transformação, esta mesma que todas as coisas possuem permitindo-nos reconhecê-las, apesar de todas as mudanças sofridas através do tempo.
Um
indivíduo humano, como já disse, é único em todo o universo. Mas como
posso afirmar tal coisa diante de um vastíssimo e pouco explorado
universo? Ora, se um dia forem encontrados dois indivíduos humanos
idênticos, dou meu braço a torcer: retiro o que afirmei.
Mas suponhamos que a ciência consiga fazer um clone humano, como já fez um clone animal: a ovelha Dolly? Bem, não quero me alongar neste ponto porque corro o risco de uma longa digressão.
Mas suponhamos que a ciência consiga fazer um clone humano, como já fez um clone animal: a ovelha Dolly? Bem, não quero me alongar neste ponto porque corro o risco de uma longa digressão.
Basta
dizer que tenho razões para pensar que teoricamente tal coisa não é
possível. O suposto clone poderá ter os mesmos genótipos do indivíduo
clonado, mas não terá os mesmos fenótipos. Por que não?
Porque os genótipos são caracteres inatos, ao passo que os fenótipos são caracteres adquiridos mediante interações com o meio.
Ora, cada
indivíduo reage de um peculiar modo aos estímulos externos. O que para
uns provoca reações negativas, para outros provoca reações positivas, o
que para uns gera um trauma de infância, para outros não passa de uma
experiência banal.
Sendo
assim, não devemos esperar que dois indivíduos, ainda que gêmeos
univitelinos, reajam do mesmo modo diante dos mesmos estímulos.
E, de
fato, gêmeos univitelinos são bastante perecidos fisionomicamente, mas
sua mãe nunca confunde um com o outro. Além disso, apesar da forte
semelhança, costumam ter temperamentos e personalidades distintos. Eles
podem ter os mesmos genótipos, mas não têm os mesmos fenótipos.
Homem, animal político
Apesar de
cada indivíduo humano ser singular, único em todo o universo, ele não
conseguiria sobreviver isoladamente de outros indivíduos. Mais do que um
animal gregário, o homem é um animal político.
Político porque só consegue sobreviver e viver dentro de uma pólis, como afirmou Aristóteles. Esta palavra grega pólis, da qual derivou a palavra política, pode ser traduzida de várias maneiras: comunidade, cidade, cidade-Estado (como a Atenas de Sócrates, Platão e Aristóteles).
Mas o que Aristóteles queria dizer com a palavra política,
nome de um de seus tratados? Para ele, era “a arte de conduzir uma
comunidade humana”, seja ela uma cidade, uma província (ou estado de uma
federação) ou uma nação (no seu caso, a cidade-Estado de Atenas).
Aristóteles procurou mostrar que um indivíduo só é o que é graças à comunidade em que ele foi criado.
Isto não
quer dizer que ele seja mero produto do meio, como propunham Émile Zola,
os naturalistas da literatura e os marxistas em geral concentrados em
sua visão coletivista de classe social como agente social e histórico em que os indivíduos são menosprezados.
Quer
dizer, isto sim, que é inconcebível um indivíduo chegar à vida adulta
sem a cooperação de outros indivíduos dentro da comunidade em que ele
nasceu e foi criado. E é justamente por isto que Thomas Paine, em seu
livro Senso Comum, fez uma importante distinção entre governo e sociedade:
Alguns
escritores confundiram de tal modo a sociedade com o governo, que
deixaram pouca ou nenhuma distinção entre ambos, quando estas coisas não
só são diferentes como também têm origens diferentes. A sociedade é
gerada pelas nossas necessidades e o governo pelos nossos vícios; a
primeira promove positivamentenossa felicidade; o segundo a promove negativamente pela contenção dos nossos vícios. Ela incentiva o intercâmbio; ele cria distinções. Ela é uma benfeitora; ele um punidor.
A
sociedade, em qualquer condição, é uma bênção; porém o governo, mesmo
na sua melhor condição, é apenas um mal necessário e, na pior, um mal
intolerável; pois quando sofremos, ou ficamos expostos às mesmas mazelas
produzidas por um governo, que deveríamos esperar de um país sem um governo, nossa calamidade se acresce quando nos damos conta de que nós mesmos fornecemos os meios através dos quais sofremos. (Paine, 1961, p.52, os grifos são de Paine).
Quanto à
afirmação de Aristóteles, ela expressa um fato muito simples, porém
irrefutável, válido em relação ao mundo animal em geral e principalmente
em relação ao animal racional, o homem.
Vejam o
caso dos jacarés. Eles saem dos ovos caminhando para a água, sem nunca
tê-la visto antes; têm dentição completa e são capazes de lutar por sua
sobrevivência, sem nenhuma ajuda de seus pais.
Vejam o
caso das tartarugas. Sua mãe deposita seus ovos na areia. No momento
apropriado, elas rompem as cascas dos ovos e caminham na direção do mar.
Como sabem o caminho, se é a primeira vez que o trilham?
A única
explicação é que, em ambos os casos, essas informações já estavam nos
genomas de cada uma das espécies. São comportamentos instintivos.
De todos
os animais, o animal racional é que fica mais tempo dependendo
completamente dos cuidados maternos. Passa por um período de amamentação
no colo materno e no berço. Depois passa por um período de engatinhamento em que aprende a andar.
Mesmo nos
primeiros anos em que já anda e começa a falar, ele é incapaz de prover
sua sobrevivência no mundo: são seus pais ou responsáveis que a
garantem. Sem esta cooperação, o indivíduo da espécie Homo sapiens mostra-se incapaz de sobreviver.
E é por
isso que, se o indivíduo chegou a ser o que é na vida adulta, foi graças
à comunidade que o criou (a família), graças às suas potencialidades
dispostas no seu genoma, bem como suas interações com diferentes
indivíduos e comunidades.
Primeiro, a família básica. Segundo, a escola básica. Terceiro, os diferentes segmentos da sociedade com os quais ele interage.
O antropólogo Jean Louis Dumont fez uma importante diferença entre indivíduo fora do mundo e indivíduo dentro do mundo.
O primeiro
tipo é o caso daquele indivíduo que vive isoladamente de tudo e de
todos. Como adulto e capaz de prover sua sobrevivência, ele já não
depende mais dos cuidados maternos, nem depende mais de ninguém.
Ele se basta a si mesmo, como aqueles monges tibetanos em sua vida isolada e puramente contemplativa.
Esses casos existem, mas são exceções. Mais frequentemente está em jogo o indivíduo dentro do mundo, um indivíduo que, mesmo quando chegou à vida adulta, não pode ser considerado totalmente independente dos outros.
Numa
sociedade moderna, como é a nossa, não há indivíduos totalmente
independentes, todos os indivíduos dependem, de diferentes maneiras, em
maior ou menor grau, dos outros. E isto muito antes de despontar a
divisão social do trabalho, que só acentuou a dependência do outro e a
importância da cooperação.
O
indivíduo dentro do mundo é um indivíduo interativo, como expressou J.
Ortega y Gasset: “Eu sou eu mais a minha circunstância”.
Em outras
palavras: o indivíduo humano é singular, mas temos de levar em
consideração sua formação mediante muitos processos de interação com os
outros.
Interação e causalidade circular
Interação é
a palavra-chave para compreender as complexas relações entre indivíduos
e suas comunidades. O indivíduo dentro do mundo é um indivíduo em
interação constante com outros indivíduos com os quais ele se comunica e
com os quais ele coopera.
Na
realidade, entre o indivíduo e a sociedade há uma relação de causalidade
circular, não uma simples relação de causalidade, ou seja: através de
incontáveis processos de interação, os indivíduos formam a sociedade e a
sociedade forma os indivíduos.
Apontar qual foi a primeira causa dentro dessa causalidade é como responder a questão: Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
Colocada
esta mesma relação causal na ordem do tempo, podemos dizer que os
indivíduos fazem a História e a as instituições e estas fazem os
indivíduos. E é por isto que interação e causalidade circular são duas palavras-chave.
De acordo com Marx, Durkheim e outros sociólogos holistas,
a sociedade é que molda os indivíduos. Mas quem molda a sociedade? Se
eles admitissem que os indivíduos também a moldam, estariam admitindo a
causalidade circular que mencionamos.
Mas não, eles tomam a sociedade como uma espécie de causa primeira, algo incausado, como se ela fosse Deus entendido como causa sui (causa de si mesmo).
Do mesmo
modo, Marx, em particular, diz que a infraestrutura (formação econômica)
causa a superestrutura (formação social, ideológica, jurídica,
religiosa, etc.) de uma dada sociedade.
Mas se
perguntarmos a ele o que causou a formação econômica de uma dada
sociedade, ele não nos responderá. E isto porque assume o pressuposto de
que a formação econômica (a infraestrutura) é causa de si mesma, como
Deus.
Além disso, Marx incorre num grave erro metodológico, o monismo epistemológico associado a uma causalidade simplista.
Por
monismo epistemológico, devemos entender a tentativa de explicar uma
diversidade de fenômenos heteróclitos reduzindo todos a uma só causa. No
caso, a formação econômica (infraestrutura) explicando as formações
religiosa, jurídica, ideológica, etc. (superestrutura).
Neste
sentido, Marx pode ser comparado a alguns outros filósofos que cometeram
o mesmo erro metodológico, a começar por Tales de Mileto (século VI
a.C) para quem a água era a causa de todas as coisas.
Outra
coisa seria, se ele tivesse dito: a água é essencial para que haja vida.
Sem água não há vida. E Marx teria toda a razão, caso tivesse dito: a
formação econômica é essencial para compreender a vida social.
No entanto, Max Weber – em contraposição ao holismo de Marx e Durkheim – adotou um individualismo metodológico, de acordo com o qual a sociedade se forma através de incontáveis processos de interação dos indivíduos que a compõem.
Essa visão
interacionista da ação humana, em que indivíduos interagindo criam
costumes e instituições, é também sustentada pela Escola Austríaca, de
onde se destacam Ludwig von Mises e Friedrich Hayek.
Nesses
processos, a formação econômica interage com outras formações; ela as
influencia à medida mesma que elas são influenciadas por ela, melhor
dizendo: todas as formações influenciam-se, umas às outras, dentro de
processos de causalidade circular.
Frequentemente, Max Weber é mal compreendido em seu livro A Ética Protestante e O Espírito do Capitalismo (1904).
Costuma-se
dizer que, assim como Marx tinha colocado Hegel de cabeça para baixo
mostrando que as condições materiais é que determinam as condições
espirituais da humanidade, Weber colocou Marx de cabeça para baixo
mostrando que a superestrutura é que determina a infraestrutura. Mas não
se trata disso, ao menos no tocante a Weber.
Em primeiro lugar, é apropriado falar em determinação em Marx, mas desapropriado falar em determinação em Weber porque ele não é um determinista. Devemos usar um conceito mais fraco: o de influência.
No caso,
influências recíprocas, como a que ocorreu com Dom Quixote (o
visionário) e Sancho Pança (o terra-a-terra). Ao longo de suas aventuras
e desventuras, Sancho vai se quixotizando e Dom Quixote se sanchizando.
É o retrato de uma simbiose positiva para ambos, à medida mesma que
cada um modera os excessos de seu temperamento.
Em segundo
lugar, Weber não diz que a superestrutura – no caso, a religião
protestante – determinou a infraestrutura – no caso, a formação
econômica capitalista.
Ele
procurou mostrar como a ética do protestantismo – no caso a ética
calvinista em suas diferentes denominações – influenciou fortemente a
grande acumulação de capital que, por sua vez, foi a principal
responsável pelo surgimento do capitalismo, neste particular de acordo
com o próprio Marx em O Capital (Das Kapital).
Como se
deu esta influência, segundo Weber? Em primeiro lugar, é preciso
compreender como os protestantes, em geral, e o calvinismo, em
particular, encaravam o trabalho humano.
Antes de
ser uma maldição, como sugere a etimologia da palavra “trabalho” –
proveniente do latim “tripalium”, um antigo instrumento de tortura – o
trabalho era encarado, sobretudo, como uma obrigação imposta por Deus
aos homens.
Como diz o Livro do Gênesis
(Antigo Testamento): “Comerás teu pão com o suor de teu rosto”. Diante
disso, os calvinistas trabalhavam duramente, para agradar ao Senhor.
Fazendo
isso, eles ganhavam muito dinheiro, mas não consumiam com a mesma
intensidade com que o ganhavam porque não apreciavam o luxo e a
ostentação, ambos considerados pecaminosos aos olhos de Deus.
Ora, se um
indivíduo ganha muito dinheiro e leva uma vida simples e frugal, e se
este dinheiro não vai, em grande parte, para o consumo, ele só pode ir
para empreendimentos, poupança e financiamentos.
E era
justamente isso que acontecia. Os calvinistas acabaram acumulando um
grande capital e muitos deles acabaram se tornando grandes financistas e
banqueiros.
É
importante acrescentar que eles não eram como os católicos da época –
ainda sob a influência de uma vetusta mentalidade medieval – hostis ao
lucro e aos juros – ao que parece, uma visão também compartilhada por
Marx movido por seu conceito de mais-valia (Mehrwert).
Isso é o que podemos dizer, em rápidas palavras, sobre a relação entre indivíduo e comunidade, de um ponto de vista descritivo. Passamos agora para o ponto de vista valorativo.
Em outras palavras, deixaremos de ver as coisas no domínio do que é e passaremos a vê-las do ponto de vista do que deve ser.
Indivíduo e comunidade do ponto de vista valorativo
Como os
indivíduos são inconcebíveis fora de uma comunidade e esta inconcebível
sem um conjunto de indivíduos, há necessariamente um relacionamento
indissolúvel entre ambos e este tem que possuir regras de convivência.
Estas têm
que ser de dois tipos gerais: (1) direitos e deveres dos indivíduos em
relação a este grande condomínio que é a sociedade, e (2) direitos e
deveres dos indivíduos em relação uns com os outros.
Tais
regras de convivência são uma decorrência inevitável do simples fato de
que os indivíduos humanos são animais gregários e, mais do que isto,
animais políticos, quer dizer: animais que, por uma questão de
sobrevivência, estão obrigados a conviver uns com outros numa
comunidade.
Ora, tal
convívio seria simplesmente inviável, caso cada um fizesse o que bem
entendesse, sem nenhuma consideração pelo bem-estar e integridade de seu
socium.
Lembremos que uma sociedade é um conjunto de socii
(sócios) e todos eles devem cumprir determinados deveres, assim como
possuir determinados direitos, para que haja uma boa convivência.
A principal regra de convivência dos indivíduos entre si é: O direito de cada um termina onde começa o do outro,
ou, nas palavras de Oliver Wendel Holmes Jr., ex-Ministro da Suprema
Corte dos EEUU: “O direito de eu movimentar meu punho acaba onde começa
seu queixo”.
Isto significa que os indivíduos devem cumprir uma máxima benéfica para todos, sintetizada nas palavras de John Stuart Mill: No harm to others, ou seja: Não causar nenhum dano (material e/ou moral) para o outro.
Por “danos
materiais” devemos entender violação e/ou destruição do patrimônio e/ou
da integridade física do outro (como avançar o punho e dar um soco no
queixo, boca e/ou nariz do outro).
Por “danos
morais” devemos entender qualquer atitude capaz de afetar gravemente a
integridade moral do outro. Resta definir o que entendemos por
“integridade moral”, o que não é tarefa fácil, porém necessária.
Importante
assinalar que todas ou ao menos a maior parte das regras de convivência
têm um caráter universal e negativo. Elas não dizem o que devemos
fazer, porém o que não devemos sob nenhuma hipótese.
Tanto
Confúcio como Thomas Hobbes enunciaram outro princípio mais genérico, do
qual podem ser derivados os de Oliver Wendel Holmes Jr. e John Stuart
Mill, a saber: Não faça ao outro o que você não gostaria que o outro fizesse a você. Este princípio supremo tem sido chamado de a Regra Dourada.
Em seu livro O Espírito da Liberdade,
Erich Fromm, um conhecido filósofo contemporâneo, relata um caso
tradicional em que são contrastadas as visões de mundo de dois rabinos e
cujo desfecho é extremamente importante para o ponto que desejamos
sustentar neste artigo.
Quando um pagão procurou Shammai e lhe pediu que explicasse toda a Torah
enquanto ficava de pé sobre uma perna, Shammai o expulsou. Quando o
pagão fez a Hillel o mesmo pedido, recebeu a resposta seguinte: “A
essência da Torah é o mandamento: ‘Não fazer ao próximo o que não desejamos que o próximo nos faça’. O resto é comentário” (Fromm, 1966, p.15; os itálicos são nossos).
Provavelmente,
o primeiro rabino, levando em consideração toda a riqueza de
ensinamentos contida no livro sagrado e por sentir dificuldade em
refletir a respeito da mesma, tomou o pedido do pagão como um insulto ou
uma brincadeira de mau gosto. Como colocar o oceano em um copo d’água?
Como explicar tal coisa no curto espaço de tempo em que um homem
consegue ficar em equilíbrio apoiado em um só pé?
O segundo
rabino, por sua vez, provavelmente percebeu que se tratava de um desses
desafios em que alguém, julgando ser impossível responder a uma
pergunta, a faz para que seu interlocutor se sinta ridicularizado e
embaraçado. Trata-se de uma espécie de xeque-mate perverso.
No nosso livro Liberdade ou Igualdade? (Porto
Alegre. Edipucrs. 2002, pp.187-197) procuramos mostrar como todos os
principais princípios da Ética podem ser deduzidos da Regra Dourada: Não faça ao outro aquilo que você não gostaria que o outro fizesse a você.
Na sua comovente simplicidade, tal Princípio Supremo não é nada fácil de ser posto em prática.
Para tal, é
preciso se colocar no lugar do outro, mediante um mecanismo de projeção
afetiva, e perguntar a si mesmo: “Eu gostaria que ele fizesse comigo
isto que estou pretendendo fazer com ele?”
Se isso
fosse posto em prática, toda vez em que se mostrasse necessário, nossos
problemas de convivência com os outros seriam muito menores do que
realmente são. Colocar isso em prática é uma condição necessária para a
boa interação e talvez seja também suficiente.
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