Desqualificação apartidária
Merval Pereira - O Globo
Especialmente aos
interessados em desqualificar a decisão, "escandalizou" o fato de que
houve votos a favor do impeachment evocando a família, a religião, a
cidade onde nasceu, o estado onde se elegeu, e assim por diante.
Mas
esses votos paroquiais, ou até mesmo esdrúxulos, antes de serem
prerrogativa dos opositores da presidente Dilma, o são de políticos de
maneira geral, e há muito tempo. O senador Magno Malta relembrou outro
dia na comissão do Senado o voto dado pelo atual ministro petista Jaques
Wagner, que se pronunciou a favor do impeachment de Collor se referindo
aos filhos e à família, comparando a sessão a um jogo de futebol com a
torcida confraternizando nas cores verde e amarela.
Também desta vez
houve quem se referisse, na hora de votar “não” ao impeachment, aos
quilombolas, ao programa Bolsa Família, a Zumbi dos Palmares, ao grande
líder Lula. No contraponto do voto mais polêmico, o do deputado Jair
Bolsonaro, que evocou o abjeto torturador Brilhante Ustra, um deputado
do PSOL dedicou seu voto contrário ao impeachment a Carlos Marighela,
guerrilheiro da Aliança Libertadora Nacional que escreveu um manual de
guerrilha em que está dito a certa altura, em defesa da execução sumária
de inimigos e traidores: “A execução é uma ação secreta na qual um
número pequeno de pessoas da guerrilha se encontram envolvidos. Em
muitos casos, a execução pode ser realizada por um franco atirador,
paciente, sozinho e desconhecido, e operando absolutamente secreto e a
sangue frio”.
O detalhe é que o voto do deputado do PSOL foi dado
antes do de Bolsonaro. Portanto, a falta de qualidade de nossos
representantes é suprapartidária e, querendo testar uma tese, enviei a
um grupo de reconhecidos estudiosos uma sondagem. Acho que já tivemos um
grupo de políticos mais relevantes no país em outros tempos, e a
representação vem decaindo a cada legislatura.
Como dizia Ulysses
Guimarães, a próxima será pior. E por que isso acontece? Tenho a
impressão de que, assim como já tivemos escolas públicas de boa
qualidade, também a representação política tem a ver com a decadência de
nosso ensino.
Por que isso aconteceu? Por que melhoramos na
abrangência da matrícula escolar, e não melhoramos a qualidade do
ensino? Isso tem mesmo a ver com a nossa representação política
deformada e decadente? Até onde o sistema eleitoral, a proliferação dos
partidos, as coligações proporcionais têm a ver com essa decadência?
O
país avançou em vários aspectos, mas piorou, acho, na representação
partidária. O que uma coisa tem a ver com a outra? Apenas o sociólogo
Simon Schwartzman, do Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade
(IETS), especialista em educação, viu “certo paralelo” entre as quedas
do sistema educacional e da representação política. “No passado, tanto o
sistema educacional quanto o sistema político eram muito fechados, só
acessíveis a uma pequena elite. Não sabemos na realidade se a educação
no passado era muito melhor, porque não temos dados para comparar, mas a
professorinha de filha de classe média que se formava pelo Instituto de
Educaçao no Rio de Janeiro provavelmente sabia mais português,
matemática e ciências do que grande parte das professoras e professores
que hoje se formam nas faculdades de pedagogia”.
Com a grande
expansão do acesso à educação, avalia Schwartzman, o sistema educacional
preservou e pode ter até melhorado a qualidade e um número muito
pequeno de escolas, sobretudo particulares e cursos universitários muito
seletivos, mas a média ficou certamente muito baixa. “Teremos que
conviver por muito tempo ainda com muitas pessoas adquirindo educação
precária, porque não se melhora um sistema escolar que cresceu de forma
muito rápida e atabalhoada em poucos anos”.
Os demais centraram suas
análises no sistema partidário, na legislação eleitoral, que debilitam a
democracia representativa, como os cientistas políticos Sérgio
Abranches e Jairo Nicolau e o sociólogo Francisco Weffort, na ditadura
militar, como o historiador José Murilo de Carvalho, na urbanização do
país, que levou a que a atividade política seja vista como uma
possibilidade de ascensão social por muitos, e no desencanto com a
carreira política na juventude, vista como viciada e corrupta, como o
sociólogo Bernardo Sorj. Amanhã e na terça-feira me deterei nessas
análises.
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