Hambúrguer passado: feira decadente é reflexo das relações entre Alemanha e EUA
Simon Pfanzeit - Der Spiegel
Fabrizio Bensch/Reuters
Após críticas à espionagem dos EUA, revelações mostram Alemanha 'super espiã'
Berlim abriga uma feira anual dedicada à cultura norte-americana. O recente declínio da feira diz muitos sobre o estado lastimável das relações germano-americanas.
Richard Simmons diz que conheceu
alguns espiões em Berlim nos anos 70. "Todo mundo em algum momento
espionou para alguém", disse ele sobre a era da Guerra Fria. E por que,
Simmons confessa se perguntar às vezes, algo que era considerado normal
na época, hoje é considerado inaceitável?Berlim abriga uma feira anual dedicada à cultura norte-americana. O recente declínio da feira diz muitos sobre o estado lastimável das relações germano-americanas.
Simmons olha para os despenhadeiros urbanos da cidade de Nova York; não longe dali, a Ponte Golden Gate desenha seus arcos no ar. No Festival Folclórico Germano-Americano em Berlim, há uma mostra de fotos das paisagens mais impressionantes dos EUA. Areia foi espalhada para criar um clima de praia, e os vasos de flores foram cuidadosamente encapados nas cores da bandeira norte-americana. Palmeiras completam a paisagem.
Simmons, 67, está sentado em frente à sua barraca de hambúrguer. Ele usa uma camisa casual e seu sotaque ao falar alemão logo denuncia suas origens norte-americanas. Quando ele fala da feira, que agora está em sua 54ª edição e tem como objetivo celebrar as relações germano-americanas, o que vem à tona é uma história de reaproximação e transitoriedade.
No início, a feira aconteceu no setor ocupado pelos EUA no oeste de Berlim, onde os soldados norte-americanos tinham uma base e viviam ao lado de seus vizinhos alemães. Multidões de alemães iam para a festa. Na época, eles ainda estavam gratos pela libertação da Alemanha e, especialmente, pela Ponte Aérea de Berlim, operação na qual os norte-americanos passaram a entregar provisões para a cidade depois que as rotas terrestres foram totalmente cortadas pela União Soviética em 1948. Foi uma época em que havia uma linha divisória clara entre amigos e inimigos. O último dia do primeiro Festival Folclórico Germano-Americano foi 13 de agosto de 1961, o dia em que começou a construção do muro de Berlim.
A ascensão...
Simmons chegou em Berlim uma década mais tarde, com o exército norte-americano. Ele aprendeu a gostar do pão alemão e também conheceu sua mulher Irene na cidade. Um general norte-americano convidou todas as pessoas que tinham ajudado com a feira para uma tenda em um festival. Irene, filha de um artista da festa de Berlim, tinha acabado de voltar de férias. Simmons, oficial de Wyoming, tinha ajudado a apagar um incêndio na propriedade do exército. Ele ainda cheirava a fumaça e não estava com vontade de ir, mas seu chefe ordenou que ele fosse. Enquanto dançavam, ele pisou várias vezes no pé dela. Felizmente, ele tinha outros talentos e de alguma forma o homem de Wyoming e a mulher de Berlim começaram a namorar. Eles se casaram em 1975 e dois anos mais tarde Simmons entrou para o negócio do sogro e assumiu as operações no Festival Germano-Americano.Na época, a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos enfrentavam a primeira grande crise em suas relações no pós-guerra. Muitos alemães ocidentais protestavam contra a guerra dos EUA no Vietnã, enquanto muitos outros, cerca de 500 mil por ano na época, frequentavam a feira anual, que era então realizada perto do quartel no distrito de Dahlem, em Berlim. Eles a frequentavam porque gostavam dos Estados Unidos ou da música norte-americana – ou até mesmo da cerveja.
Simmons sempre sentiu que a festa tinha uma dimensão política. "A feira era um lugar onde podíamos dizer aos alemães o que pensamos e porque pensamos assim", disse ele. Mas em 1994, poucos anos depois da reunificação alemã, o exército norte-americano se retirou de Berlim. E agora, 20 anos mais tarde, quando o irmão mais velho da Alemanha foi denunciado como sendo o Grande Irmão nas revelações recentes de espionagem da NSA, há poucas pessoas por lá para explicar exatamente como os EUA estão pensando hoje em dia.
Simmons ainda tenta. "Um país grande precisa se proteger", diz. "E os EUA sabem que um amigo pode se transformar rapidamente em um inimigo."
Sua mulher senta-se ao seu lado enquanto ambos bebem garrafinhas de chá gelado Arizona. "Merkel deve admitir que, na posição dela, ela não pode nem ir ao banheiro sem ser observada", diz Irene, 63. Ela diz que uma coisa é achar, como Edward Snowden, que a NSA é poderosa demais e que ela não tem nada que bisbilhotar o telefone celular de Merkel. "Mas não é apropriado levar isso a público", diz. Irene tem uma relação estreita com os Estados Unidos há quatro décadas; ela entende como os EUA pensam.
... e a queda
Mas ficou muito mais difícil entender como os berlinenses, ou talvez até mesmo todos os alemães, pensam hoje em dia. Eles não parecem saber quem são seus verdadeiros amigos. Há três anos, o festival anual foi retirado de Dahlem e um luxuoso complexo de apartamentos foi construído onde a feira era realizada. Os organizadores do evento encontraram um refúgio no bairro de Moabit, no centro de Berlim, que fazia parte do setor ocupado pelos britânicos. Alguns donos de barracas tiveram reservas em relação ao novo local. Simmons alugou uma roda-gigante para torná-lo mais visível em uma cidade onde este tipo de feira é abundante. Pouco tempo depois, ele declarou falência e teve que transferir as operações da feira para novos donos. Agora, ele e sua mulher só administram três barracas que vendem hambúrgueres, cachorros-quentes, chá gelado e cerveja.Mais uma vez este ano, o cheiro de asfalto se mistura ao dos hambúrgueres na chapa. Obras crescem em toda a volta, como parte do novo complexo empresarial berlinense Europa-City. Mais uma vez, parece que o evento terá que desarmar suas barracas e se mudar. Pode-se argumentar que os Estados Unidos estão sendo jogados de um lado para o outro da cidade – e não são um país que gosta de ser jogado contra a parede.
Da última vez que o Festival Folclórico Germano-Americano se mudou, os donos das barracas esperavam ir para o local do antigo Aeroporto Tempelhof, na cidade. E esta é uma esperança que eles não abandonaram. Por se tratar do aeroporto onde muitos dos voos da Ponte Aérea de Berlim aterrissavam, ele é visto como um lar espiritual das relações germano-americanas. "Minha irmã nasceu em 1946", diz Irene. "Sem os norte-americanos, ela teria passado fome em Berlim." Mas a prefeitura decidiu que o plano violaria a "necessidade de proteger os moradores". Para os Simmons, a ideia de que os alemães precisam se proteger de quem antes os protegia era um conceito totalmente novo.
Choveu com gosto na abertura da feira este ano e os visitantes buscaram abrigo sob os guarda-sóis do café. Parecia que os créditos finais do evento estavam subindo na tela e que aquele podia ser o fim. Tanto o embaixador norte-americano quanto o prefeito de Berlim tinham sido convidados, como antigamente, mas nenhum dos dois compareceu. A embaixada enviou seu attaché de imprensa e a prefeitura mandou um funcionário de baixa hierarquia. Mas ele chegou tarde demais para a cerimônia de abertura.
Tradutor: Eloise De Vylder
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