sábado, 25 de junho de 2016

Será que a culpa foi dela? Pretextos absurdos para o Brexit
Perdedores inconformados investem até contra os velhinhos, como Elizabeth Hurley, atriz que votou “não”
Vilma Gryzinski - VEJA
A modelo e atriz Elizabeth Hurley demostra seu apoio ao Brexit nas redes sociaisA modelo e atriz Elizabeth Hurley demostra seu apoio ao Brexit nas redes sociais
O que fazer depois de uma votação que teve a maior participação na história eleitoral do país? Outra votação, claro. É isso que pedem mais de 1,5 milhão de pessoas – um número em crescimento – que já aderiram a um abaixo assinado reclamando o direito a um segundo plebiscito sobre a saída britânica da União Europeia.
O choro dos perdedores faz parte do jogo, mas as desculpas esfarrapadas que estão buscando são
divertidas. Uma delas: os mais velhos penhoraram o futuro dos mais jovens, teimando em exercer, imaginem que absurdo, o direito universal ao voto.
É verdade que as faixas etárias mais altas apoiaram em massa o Brexit. Um exemplo disso é a atriz Elizabeth Hurley – acreditem, ela tem 51 anos. Numa exceção rara entre atores, cantores e outras celebridades que emitiram tsunamis de opiniões apoiando o voto pelo “sim”, ela disse que era favorável à saída. Provavelmente até seu ex mais famoso, Hugh Grant, ficou bravo e armou o biquinho famoso.
“Se você é jovem e está fulo com o referendo da UE, tem razão”, escreveu uma blogueira, evidentemente jovem, no Guardian. O raciocínio é o mesmo: se dois terços dos jovens queriam ficar, sua preferência deveria ser imediatamente atendida. Afinal, não é só apertar o botão de curtir?
Não, não é. Mas bastava passar num posto eleitoral – todos abertos até as 10 horas da noite – ou ter votado antes, por correio. Numa pesquisa feita no festival de Glastonbury, onde as chuvas de verão são o pretexto perfeito para a graciosa combinação de botas de borracha e shortinho, apenas 22% dos participantes haviam se dado ao trabalho de votar. A maioria, de forma geral, parecia mais interessada numa palavra que começa com E e quase rima com Brexit.
Fora da geração acostumada à gratificação imediata, o choque do Brexit serviu para algumas descobertas espantosas entre as esquerdas. No mesmo Guardian, bastião de todos os esquerdismos, outro comentarista, John Harris, constatou que foram os pobres os maiores eleitores pela saída.
Ele pelo menos se deu ao trabalho de ver o que pensa essa gente esquisita, que se sente “excluída da política” e votou pelo Brexit, numa espécie “distorcida de luta de classes”. Também já conhecia as áreas decaídas do interior da Inglaterra, onde a Revolução Industrial floresceu e hoje os trabalhadores locais não acham emprego. O salário mínimo em Londres é de 9,15 libras, cerca de 5,5 vezes a mais em reais. Imigrantes vindos de países europeus mais pobres, principalmente do Leste, trabalham por 3 libras a hora.
Jeremy Corbyn, o líder de extrema-esquerda do Partido Trabalhista, esperou o “não” ganhar para dizer que sabe como a imigração em larga escala “exerce pressão” sobre os serviços sociais. “Nossas políticas sobre comercio, a economia e migração vão mudar”, prometeu. Companheiros de partido estão pedindo a cabeça de Corbyn, que foi vaiado em público pela campanha morna e perdedora.
Sair da União Europeia evidentemente tem consequências enormes em termos de deslindar uma aliança de mais de 40 anos. Também dá pena ver a insegurança que provocou, não entre jovens mimados que se horrorizam diante da perspectiva de entrar na fila “Outros” quando viajarem para a Europa continental (dificilmente vai acontecer), como de gente que trabalha duro, há anos no país, e tem medo de precisar embora (também é improvável que aconteça). “Eu vi um amigo meu polonês chorar”, disse o homem que vaiou Corbyn.
Manter acordos comerciais e tarifários mutuamente vantajosos com o resto da Europa é não só possível como obrigatório, apesar das ameaças momentâneas. Seria “muito, muito idiota” sobretaxar as importações britânicas, resumiu o presidente da Confederação Alemã de Indústrias, Markus Kerber. Principalmente porque um quinto dos carros fabricados na Alemanha são exportados para a Grã-Bretanha.
O escritor George Orwell escreveu na linha inicial de um ensaio sobre a Inglaterra, O Leão e o Unicórnio, um dos introitos mais simples e espetaculares de sua obra genial: “Enquanto eu escrevo, seres humanos altamente civilizados voam acima da minha cabeça, tentando me matar”.
Era, evidentemente, a II Guerra Mundial. Ele fala sobre características nacionais dos ingleses, com pedido de desculpas a escoceses e irlandeses, como os dentes estragados, a falta de dotes artísticos, o “horror ao pensamento abstrato”, o amor pelas flores e pelas palavras cruzadas.
Os ingleses comuns também “são jogadores inveterados, tomam tanta cerveja quanto o salário permite, cultivam piadas sujas e provavelmente usam os palavrões mais cabeludos do mundo”. Mas “em momentos de suprema crise, a nação inteira pode subitamente se unir e agir com uma espécie de instinto, um código de conduta que é subentendido por quase todo mundo, embora nunca formulado”.
Para defensores do Brexit, foi esta espécie de instinto coletivo que guiou o povo, salvando o país da perda irreparável da capacidade de decidir seu próprio destino. Ou pelo menos é isso que emergirá da reviravolta do “não”.
Os que se opunham a isso, têm uma lista muito maior, e em muitos sentidos muito mais racional, de motivos. Frustração, choque e espanto são reações naturais a uma mudança tão grande. Só não vale por a culpa na Elizabeth Hurley.

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