A crise da Crimeia
O Estado de S.Paulo
Nikita Sergueievich Kruchev deve estar se revolvendo no
túmulo do cemitério Novodevichy, em Moscou, onde jaz desde 1971. Em
1954, o ditador resolveu dar à então República Socialista Soviética da
Ucrânia um presentaço pelo 300.º aniversário da unificação do país com a
Rússia: entregou-lhe a Península da Crimeia, no Mar Negro, outrora a
joia da coroa da Rússia imperial e resort privilegiado das cortes
czaristas - como viria a ser, depois da Revolução, da elite comunista, a
nomenklatura do regime.
Kruchev mencionou de passagem a decisão a alguns camaradas a caminho
de um almoço. Naturalmente, todos assentiram. Em seguida, numa sessão de
apenas 15 minutos, o órgão máximo do Estado, o Presidium do Conselho
Supremo da URSS, chancelou a aparente generosidade. Aparente porque, na
realidade, se tratava de uma reparação. No final dos anos 1930, sob as
ordens de Stalin, Kruchev comandou em território ucraniano o expurgo dos
"inimigos do povo" que abateu milhares de pessoas.
De mais a mais, como lembra a sua bisneta, Nina Krucheva, professora
de relações internacionais em Nova York, em 1954 pouco importava se a
Crimeia fizesse parte da Rússia ou da Ucrânia. Era tudo uma coisa só -
para a eternidade. Mas, em 1992, passado um ano do desmoronamento da
União Soviética, quando o Conselho Supremo, agora da Rússia, considerou
ilegal o ato de Kruchev, o máximo que Moscou conseguiu da Ucrânia foi a
denominação da Crimeia como república autônoma.
O problema - que acaba de irromper a plena força com a queda do
presidente ucraniano pró-russo Viktor Yanukovich, derrubado por uma
insurreição popular - é a composição étnica da Crimeia. São de origem
russa, falam russo, têm estreitos laços econômicos com a Rússia e se
sentem parte da Mãe-Pátria, como dizem, cerca de 60% dos 2 milhões de
habitantes da região. Foi para a Crimeia, por sinal, que Yanukovich
fugiu.
A destituição do que era, afinal, um presidente legítimo - e que
assim continua a se considerar - pôs em pé de guerra, de um lado, a
maioria russa da península e, de outro, as minorias ucraniana e tártara.
Esta última, muçulmana, representando uns 15% da população, odeia a
Rússia por dois motivos. Um, a deportação de 190 mil dos seus para a
Ásia Central, em 1944, acusados por Stalin de colaborar com os nazistas.
(Só puderam voltar em 1991.) Outro, a aversão do presidente Vladimir
Putin aos islâmicos em geral, na Rússia vítima de atentados terroristas.
Nos últimos dias, membros das três etnias se engalfinharam em
Simferopol, a capital da região. Ontem, nacionalistas russos, com
máscaras e armas, ocuparam o Parlamento e edifícios públicos, neles
hasteando a bandeira da Federação Russa. Diante da sede do Legislativo, o
líder de um grupo que se intitula Movimento Russo para a Crimeia leu
uma nota de Yanukovich, já albergado na Rússia, reiterando ser o
presidente de direito da Ucrânia e pedindo a Moscou que garanta a sua
segurança pessoal ameaçada pelos "extremistas".
Em Kiev, o governo interino considerou irrelevantes as palavras do
líder deposto. Mas as novas autoridades levam apropriadamente a sério a
possibilidade de erupção de um movimento separatista na Crimeia, com o
apoio de Moscou. O temor - compartilhado pelo Ocidente - se agravou com a
primeira resposta de Putin à sua maior derrota desde que chegou ao
Kremlin, como premiê, em 1999. Na quarta-feira, três dias depois do
abalo, colocou em alerta as tropas no oeste russo e ordenou manobras de
vulto na soleira da Ucrânia.
Pode ser apenas o que os argentinos chamam saludo a la bandera - uma
homenagem ritualística ao poderio nacional, para avisar aos novos
governantes ucranianos e seus aliados ocidentais que não podem ignorar a
realidade geopolítica da região. Putin decerto está pronto para
advertir que ela inclui o bem-estar dos russos da Crimeia. Ali está
fundeada a frota do país no Mar Negro. O chanceler Sergei Lavrov já está
dizendo que a Rússia "não transigirá" na defesa dos seus compatriotas
na Ucrânia.
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