A revolução do real
O Estado de S.Paulo
Há 20 anos uma revolução sem armas e sem passeatas
começou a mudar a vida dos brasileiros, quando o presidente Itamar
Franco assinou a Medida Provisória (MP) 434 e criou a Unidade Real de
Valor (URV), embrião de uma nova moeda, o real. Naquele mês de
fevereiro, os preços ao consumidor subiram 40,27% e a alta acumulada em
12 meses chegou a 757,29%. Em 2013, a inflação anual ficou em 5,91%. Há
20 anos, os preços de bens e serviços aumentavam muito mais que isso em
apenas uma semana. Recebido o pagamento, os trabalhadores corriam ao
supermercado para abastecer a casa. A corrosão do salário em poucos dias
era muito maior do que foi em todo o ano passado.
Como o ar, a água, as praças e a ordem democrática, a moeda é um bem
público e a sua preservação é uma das obrigações mais importantes do
poder político.
Cumprir essa obrigação é também proteger os pobres, os mais indefesos
diante da alta de preços. Em tempos de inflação elevada, o reajuste de
seus ganhos é normalmente mais lento que a alta do custo de vida. Além
disso, eles são menos capazes de poupar e de buscar proteção em
aplicações financeiras. Políticas de transferência de renda teriam sido
inúteis no Brasil da espiral inflacionária, porque os benefícios seriam
rapidamente anulados pelos preços em disparada. Apesar disso, há quem
defenda a tolerância à inflação como política progressista.
Assinada em 27 de fevereiro, a MP entrou em vigor no dia seguinte,
com a publicação no Diário Oficial. Durante quatro meses o Brasil teria
duas moedas. A URV serviria como referência de valor. O cruzeiro real,
ainda em circulação, continuaria usado para os pagamentos e outras
operações do dia a dia.
Lançada com o valor inicial de CR$ 647,50, a URV seria reajustada
todos os dias até a emissão da nova moeda, em 1.º de julho. Nesse
período, serviu de base para o reajuste de todos os preços, a
atualização de contratos e a fixação da taxa de câmbio pelo Banco
Central (BC).
Emitido o real, com valor correspondente a CR$ 2.750,00, houve de
novo a unificação monetária, com um só instrumento servindo como unidade
de conta, meio de pagamento e reserva de valor. Não seria apenas uma
nova moeda, como aquelas criadas em planos anteriores de estabilização e
logo erodidas e desmoralizadas por um novo surto inflacionário.
A atualização diária dos preços, com base na variação da URV, deveria
servir para uma recomposição geral de valores e de suas proporções.
Tudo se passaria como se a indexação fosse levada ao extremo para em
seguida, de repente, ser interrompida. Autores de planos anteriores
haviam tentado vencer a inflação inercial - a realimentação constante da
alta de preços pelo prolongamento do impulso inflacionário. Mas essas
tentativas haviam sempre envolvido congelamentos de preços e truques
variados. Não haveria mágicas no real.
Proibir a indexação na maior parte dos contratos foi uma das
primeiras medidas, a partir da reforma monetária. Mas essa iniciativa
teria sido anulada pelo retorno da inflação, se faltassem esforços muito
mais ambiciosos. Avançou-se na desestatização para aliviar o Estado e
aumentar a eficiência do governo e de importantes indústrias de base e
de infraestrutura. Ampliou-se a abertura comercial.
Iniciou-se, enfim, uma complexa renegociação das dívidas de Estados e
municípios. Esse arranjo incluiu a extinção ou reforma de bancos
estaduais. Essa manobra permitiu o ressurgimento de uma política
monetária eficaz, algo impossível quando o BC era forçado a sancionar a
desordem criada pelos governos de Estados e seus bancos.
Só um BC revigorado e com bons instrumentos poderia ter vencido com
rapidez, como venceu, os surtos inflacionários de 2002-2003 e de 2009.
Em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal completaria a reforma.
Com o real, o brasileiro passou a dispor de novo de uma moeda
respeitável e adequada às funções clássicas de meio de troca, unidade de
conta e reserva de valor. Como tantas outras conquistas, essa também é
reversível. Nenhuma moeda é indestrutível quando se combinam por algum
tempo a tolerância à inflação, a irresponsabilidade fiscal e o
populismo.
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