A análise de alguns discursos mais ingénuos das pessoas comuns pode ser bastante reveladora do “espírito da época”. Diz Olavo de Carvalho que podemos aprender muito mais da sociedade e da cultura através do estudo da idiotice do que pelo estudo das obras de génio. Os génios não integram os dados ao seu redor de forma bruta mas fazem-no através de uma dialéctica entre a sociedade e a sua personalidade. Já o idiota absorve tudo à sua volta e repete aquilo quase sem filtros, sejam frases feitas, tiques de linguagem, preconceitos, lendas urbanas ou discursos de propaganda. A mente do idiota é como se fosse um “depósito geológico” (palavras minhas), e analisando os seus extractos quase podemos mapear directamente a presença daqueles elementos na sociedade.
Este artigo visa apenas especular um pouco sobre a evolução de um desses elementos, fazendo a seguinte pergunta: como evoluiu o orgulho natural das pessoas e o que é que essa evolução representa? O orgulho natural é aquele que não é enlameado pela soberba. No final, podemos tentar avaliar se tal coisa não está em “vias de extinção”.
De que se orgulhavam as pessoas antigamente? Uma pessoa podia se orgulhar de ter trabalhado muito para sustentar uma família, ou de ter construído uma empresa e criado postos de trabalho, ou de ter servido o país como militar, ou de ter estudado e encontrado a solução para algum problema importante, ou de ter ganho alguma competição desportiva importante e assim por diante. Ou seja, era um orgulho derivado da criação de algum resultado palpável, e que era também motivo de admiração por parte de outros. Inevitavelmente, isto era também uma fonte de inveja. A “obra feita” paira sempre diante dos inaptos, preguiçosos ou rancorosos como uma ofensa pessoal, que importa denegrir, ou destruir, se for possível, a todo o custo.
Daqui também se pode tirar uma conclusão: os jovens não podem ser admirados ou invejados, neste sentido, porque nada fizeram digno de nota. A excepção são os mancebos de certas famílias, que podem ser logo encorajados a ter um certo orgulho daquilo que virão a ser um dia. Mas isto funciona sobretudo como uma forma de pressão, que acaba por ser intolerável para alguns.
Entretanto, surgiu um factor que veio embrutecer a sensibilidade das pessoas a respeito destes assuntos. Antigamente, um actor para aparecer em filmes importantes (ou um músico para ascender ao estrelato) tinha de fazer antes um longo percurso artístico. O fenómeno já era estranho, porque consistia num público com uma grande admiração por alguém que, muito provavelmente, nunca iria ver ao vivo, porque tudo já se passava de forma intermediada. Mas tudo isto piorou muito com a unificação do mundo do espectáculo com a grande media, indústrias que sofreram também um grande processo de concentração. O resultado foi o surgimento de “estrelas” de um dia para o outro, apenas por decisão de alguns indivíduos que ninguém sabe quem são. O mecanismo funciona porque a “multidão solitária” é informada ao mesmo tempo de que tal pessoa é admirada por toda a gente, embora no momento anterior fosse totalmente desconhecida dessas mesmas pessoas. É o mecanismo do desejo mimético funcionando em larga escala e através de intermediários muito poderosos, fazendo com que pessoas sejam admiradas apenas pelo facto de se achar que já são admiradas.
Este fenómeno do desejo mimético intermediado pela poderosa indústria de media e espectáculo – não apenas as duas indústrias funcionam cada vez mais em regime de simbiose como a media apresenta-se como uma forma de espectáculo e o espectáculo pretende ser informativo, tentando sensibilizar as consciências e assim por diante – permite o surgimento de um novo tipo de estrelas. Estas já não precisam de ser galãs ou divas do cinema, nem membros de bandas de rock, nem desportistas. Podem ser simples apresentadores de programas de televisão, como o caso de Oprah Winfrey, não apenas famosa mundialmente mas também bilionária.
Com o surgimento das socialites, o fenómeno atinge um novo patamar e começa a parodiar-se a si mesmo. Note-se que em termos de desejo mimético envolvendo as pessoas comuns, as socialites são uma coisa recente. O que havia antes eram pessoas da alta sociedade que organizavam eventos de beneficência e tentavam com os seus jantares e recepções cimentar redes de contactos, arranjar favores e assim por diante. Este tipo de coisas ainda existe mas, pela sua própria natureza, está afastado dos olhares do grande público. Pode dizer-se que a mãe de Winston Churchill era uma socialite ao estilo antigo, que em determinado período fez um grande trabalho de bastidores em prol da carreira do filho. Mas as socialites modernas distinguem-se e são admiradas pelo simples facto de aparecerem e serem vistas para eventos que têm por fim quase único a exibição dessas figuras (as pessoas realmente influentes na sociedade não querem se misturar com essa gentalha).
Em suma, com a consagração das socialites chegamos ao ponto em que se torna um desperdício de tempo e de energia tentar produzir alguma coisa, porque o reconhecimento é um meio e um fim ao mesmo tempo: a pessoa orgulha-se de ser reconhecida por ter tentado ser reconhecida.
Contudo, este caminho não está aberto ao cidadão comum, que não tem acesso a este tipo de eventos de encantamento das massas. Mas a lição de que não é necessário ser algo ou produzir algo para ter orgulho de si mesmo foi aprendida. O que resta, então? O puro caminho negativo, a negação de ser ou fazer algo. Daí surge um orgulho desmedido daqueles que afirmam que não fumam, ou que não comem carne, ou que não comem sushi, ou que não usam produtos Microsoft e assim por diante.
Note-se que não são estas decisões em si que estão em causa, porque decidir é próprio do ser humano, mas o facto de tomá-las como base da construção de uma identidade. As pessoas fazem esta operação, quase sempre, sem se dar conta do que está verdadeiramente em causa e, por isso, falei inicialmente dos discursos ingénuos reveladores do “espírito da época”. Por esta linha de raciocínio, depreende-se que uma das características da nossa época é a homenagem prestada ao vazio. Claro que outras épocas também foram contaminadas pelo vazio, pelo niilismo, mas em nenhuma como na nossa isso foi feito com tanta leveza e empenho. Mesmo pessoas comuns estão munidas de um vasto arsenal de argumentos científicos, éticos, históricos ou filosóficos, que elas usam para justificar as suas opções negativas, sem perceber que todo esta verborreia não impede mas até favorece que elas sejam definidas pelos seus contrários. Por isso, esta gente tem tanta necessidade de adversários, de lhes apontar as supostas contradições, as maldades, o passadismo e assim por diante. No dia em que não tivessem mais adversários, reais ou imaginários, toda a vacuidade das suas existências ficaria exposta no mais alto grau.
Pode haver quem tenha a tentação de argumentar que as religiões também têm proibições ou limitações em termos alimentares ou de costumes, mas elas não apontam para um caminho niilista, muito pelo contrário. Isto até abriria caminho para uma espiritualidade laica e individual, em que cada um fabrica a sua “religião” escolhendo os elementos que quiser de outras religiões, como se estivesse lendo um cardápio num restaurante, podendo também, obviamente, inventar os seus próprios valores, mandamentos, rituais e escrituras sagradas. Claro que isto é puro non sense. As proibições religiosas só fazem sentido dentro do contexto da religião onde ocorrem, e fora disso são apenas como que elementos etnográficos sem qualquer relevância. Aos olhos dos seus adversários, as religiões parecem funcionar apenas como limitadores das potencialidades humanas, porque eles não conseguem ver nenhum efeito positivo, construtivo, nos mandamentos e proibições religiosas. É uma espécie de cegueira compensatória, que joga no adversário as falhas que não se quer ver em si mesmo.
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