Dilma, a penitente
Demétrio Magnoli - O Globo
Segundo André
Singer, Dilma Rousseff peregrinou até o Fórum Eonômico Mundial de Davos
penitenciando-se pela efêmera “aventura desenvolvimentista” do Brasil e
depositando, “no altar das finanças”, as “oferendas de praxe” a fim de
“obter a absolvição dos endinheirados” (“Folha de S.Paulo”, 25 de
janeiro).
Singer foi porta-voz de Lula no primeiro mandato e
depois, por algum motivo, deslocou-se para a esquerda, identificou a
natureza conservadora do lulismo e tornou-se um arauto das imprudências
econômicas que empurraram a Argentina à beira do precipício. Seu artigo,
um lamento do suposto giro à direita do governo, pouco esclarece sobre a
conjuntura. Mas, inadvertidamente, lança luz sobre a oscilação pendular
da política econômica lulista.
No passado, a esquerda petista
pregava a ruptura com o capitalismo. Hoje, excetuando-se dois ou três
grupos insignificantes, e fora dos dias de festa e louca bebedeira,
ninguém mais fala nisso. A ordem, nessas alas, é pregar uma volátil
combinação de políticas insustentáveis: mais inflação, depreciação
cambial, fortes aumentos de gastos públicos, subsídios à indústria,
protecionismo comercial.
Cristina Kirchner seguiu a receita
“desenvolvimentista” quase inteira, até emparedar a Argentina entre as
muralhas do descontrole inflacionário, do desinvestimento e da fuga de
capitais. Dilma, que não é Cristina, manobra a nau do Brasil antes da
chegada da tempestade.
A primeira oscilação assinalou o
encerramento da ortodoxia palocciana. O “desenvolvimentismo” (quantas
aspas serão necessárias aqui?) petista emergiu após o escândalo do
mensalão e ganhou impulso na hora da eclosão da crise financeira
internacional.
Lula não operou a brusca mudança de rota por uma
motivação ideológica, algo que lhe é estranho, mas por um certeiro
cálculo de poder: a fórmula de expansão do crédito subsidiado e dos
gastos públicos (sem a parte da depreciação cambial) reativaria o
crescimento e o consumo, assegurando o triunfo eleitoral de Dilma.
Contudo, caracteristicamente, a esquerda petista interpretou o novo rumo
como uma vitória sua: a consagração de um dogma ideológico. Agora, no
momento da segunda oscilação, seus intelectuais fabricam teses políticas
convenientes, destinadas a ocultar o fracasso do dogma.
A teoria
de fundo, velha de uma década, classifica os governos lulistas como
“governos em disputa”, ou seja, como campos de confrontação entre a
“elite” e os “trabalhadores”. A ideia, de vaga sonoridade marxista, tem
mil e uma utilidades. Nos intercâmbios políticos cotidianos, serve para
aureolar pretendentes petistas a cargos públicos também almejados por
outros partidos do extenso arco governista.
Nos episódios de
repressão a protestos de “movimentos sociais”, funciona como álibi para
expressar solidariedade aos “companheiros” sem romper com o governo ou
renunciar a preciosos cargos na máquina estatal. Na hora da oscilação do
pêndulo da política econômica, converte-se numa senha para a
delinquência intelectual. Ficamos sabendo, então, que Dilma, a
penitente, escalou a montanha de Davos por nutrir um temor reverencial
aos “endinheirados” — não porque o “desenvolvimentismo” fracassou.
Lula
é, antes de tudo, um pragmático: futuro, para ele, nunca representa
mais que a próxima eleição. O presidente de facto intuiu o perigo na
queda das taxas de crescimento do PIB, no repique inflacionário, na
carantonha das agências de classificação de risco, nas manifestações de
junho, na retomada americana, no destino da Argentina. Partiu dele a
ordem de reorientar a política econômica e, não por acaso, também o nada
discreto lançamento da “candidatura” de Henrique Meirelles ao
Ministério da Fazenda.
Dilma não é Cristina porque, aqui, existe
Lula. A alma da presidente de direito inclina-se na direção do
“desenvolvimentismo” — mas ela sabe quem manda. Ao preservar Guido
Mantega, enquanto escala a montanha de Davos, Dilma abraça-se
simbolicamente às suas convicções ideológicas, que já sacrificou
materialmente.
Os malvados “endinheirados” não reclamaram antes, e
não reclamarão agora. O “desenvolvimentismo” dessa esquerda petista
pós-socialista provocou uma explosão do consumo que girou a roda dos
negócios, do varejo à construção civil, e expandiu como nunca os
subsídios públicos para o alto empresariado, como atesta o caso extremo
de Eike Batista.
A volta do cipó de aroeira, tão bem evidenciada
pela restauração das taxas de juros de dois dígitos, transfere recursos
de um bloco de “endinheirados” para outro e freia o trem desgovernado do
consumo popular. Não é muito alvissareiro realizar a manobra na
antevéspera das eleições, mas a alternativa seria pior: pense na
Argentina.
Dilma disse em Davos que ama o mercado, o investimento
privado e a estabilidade econômica. As “oferendas de praxe” equivalem,
até certo ponto, a uma abjuração de crenças pessoais, mas não a uma
ruptura com a natureza do lulismo. Nas atuais circunstâncias
internacionais, a mudança de rumo oferece as melhores chances de triunfo
num embate eleitoral pontilhado de incertezas.
Os
“desenvolvimentistas” deveriam louvar o aguçado instinto político de
Lula: sem a prudente reorientação ortodoxa em curso, o receituário
econômico desastroso que eles pregam experimentaria o teste completo da
história.
Utópicos? “Sonháticos”? Nem sempre: os
“desenvolvimentistas” sabem, ao menos um pouco, onde o calo aperta no
ano das eleições. Na conclusão de seu artigo, Singer faz um alerta: “Em
fevereiro, o mercado vai exigir um superávit primário robusto e um
contingenciamento idem para garanti-lo.”
O recado é claro como o
sol do meio-dia. Ele está dizendo que Mantega precisa voltar atrás nos
sugeridos compromissos de contenção fiscal porque, afinal, as urnas
estão aí, na esquina. Não é “luta de classes”, mas apenas o natural
desejo político de conservar o poder. Em nome do “povo”, bem entendido.
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