Passado a limpo
Dora Kramer - O Estado de S.Paulo
Não está claro quando a verdade saiu contundida: se no presente ou no passado.
Mas, tenha maquiado a realidade antes ou esteja agora adaptando o
discurso às circunstâncias eleitorais, fato é que o governo apresenta
versões diferentes daquelas que divulgava meses atrás sobre os protestos
de junho e o grau de dificuldade da reeleição da presidente Dilma
Rousseff.
Todo mundo tem direito a mudar de opinião. Desde que, principalmente
em se tratando de governos, fique bem explicado e justificado que se
trata de uma mudança de posição. Do contrário, o que se tem é um
exercício de "apagamento" da memória coletiva, a falta consentida de
compromisso com a palavra dita.
Na sexta-feira passada, o secretário-geral da Presidência da
República, Gilberto Carvalho, disse no Fórum Social, em Porto Alegre
(enquanto Dilma falava no Fórum Econômico, na Suíça) que houve
perplexidade no governo federal e até um sentimento de "ingratidão" em
relação aos manifestantes do mês de junho de 2013.
Segundo Carvalho, levou-se "um susto" em Brasília. "Nós ficamos
perplexos". E, por "nós", explicou, falava do governo e dos "movimentos
tradicionais". Sentiram "dor", como quem diz, "fizemos tanto por essa
gente e agora eles se levantam contra nós", relatou o assessor
presidencial à plateia.
Perplexo e assustado certamente ficou, ao ler a declaração, quem se
lembrava das declarações de governistas à época dos protestos. Nada a
ver com o que disse o secretário-geral agora.
A avaliação corrente entre esse grupo era a de que as manifestações
ocorreram devido aos êxitos das administrações do PT, pois elas
melhoraram a vida das pessoas e aumentaram o nível de exigência dos
incluídos. Além disso, os protestos, afirmavam com razão, não eram
contra o governo federal, mas contra todos os partidos e políticos.
A presidente Dilma, especificamente, disse mais de uma vez que
entendia e ouvia a voz das ruas, que o "Brasil acordou mais forte" e que
as queixas e os queixosos mereciam todo respeito e consideração. Onde a
mágoa? Onde o sentimento de ingratidão? Onde a sensação de que "fizemos
tanto por essa gente e agora eles se levantam contra nós"? Onde a
verdade? Neste caso, provavelmente na fala atual de Gilberto Carvalho.
Maquiados estavam os discursos oficiais da época.
Reportagem de João Domingos publicada na edição de segunda-feira do Estado, tendo
como personagens vários petistas importantes, mostra que na avaliação
do partido a disputa eleitoral será muito difícil e sem perspectiva de
vitória no primeiro turno.
Os analistas citados: Gilberto Carvalho, o ex-presidente Lula da
Silva, o presidente do PT, Rui Falcão, e o vice- presidente da Câmara,
André Vargas.
Eram os mesmos que juntos a outros tantos até recentemente ironizavam
a oposição, menosprezavam os oponentes, provocavam, davam a entender
que a eleição seria praticamente uma formalidade. Apenas por acidente
Dilma não seria reeleita no primeiro turno.
O jornalista João Santana, tido como 40.º ministro tal a sua
influência como arquiteto das magias palacianas e eleitorais, disse em
altaneiro tom após a primeira grande queda da presidente nas pesquisas,
ao prever a recuperação: "A Dilma vai ganhar no primeiro turno, porque
ocorrerá uma antropofagia de anões. Eles (os adversários) vão se comer
lá embaixo e ela, sobranceira, vai planar no Olimpo".
Onde a verdade? Nas palavras de Santana, na arrogância anterior das
lideranças ou nas avaliações mais comedidas de hoje? Aqui, tudo indica
que as circunstâncias atuais recomendaram uma conciliação entre
realidade e humildade. Pela razão prática do recuo estratégico para
abrir espaço ao avanço tático.
Nenhum comentário:
Postar um comentário