A Idade das Trevas
GAUDÊNCIO TORQUATO - O Estado de S.Paulo
"A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da
civilização e em grande parte do mundo elas parecem estar evaporando." A
observação, feita há cerca de 20 anos pelo professor da Universidade
Harvard Samuel P. Huntington, no clássico O Choque das Civilizações,
mostra-se pertinente para uma avaliação do atual estado da humanidade.
A ideia ganha consistência quando se puxam para o cenário as
manifestações turbulentas em várias cidades do mundo, na onda de
conflitos entre grupos étnicos, gangues de jovens, turbas desfraldando a
bandeira de um nacionalismo xenófobo, situações que forçam a expansão
de partidos de extrema direita, principalmente na Europa. Ressentem-se
todos das instituições políticas, que não conseguem dar vazão às
demandas sociais, e brandem a arma do ódio contra o outro, o
estrangeiro, o não europeu, notadamente a comunidade muçulmana. Há quem
garanta, como o professor britânico Jamie Bartlett, pesquisador do
Instituto Demos e principal autor de um estudo sobre os grupos radicais
de extrema direita na Europa, que o continente vive um impasse: deixar
de ser caixa de ressonância das liberdades para se transformar em
bastião do autoritarismo, ancorado nos eixos do ultranacionalismo, da
islamofobia e do antissemitismo, entre outros.
Já a grave leitura do professor de Harvard sobre o conflito entre
civilizações aponta para o limiar de uma Idade das Trevas no planeta.
Argumenta Huntington que o Ocidente, com a clássica imagem de predomínio
avassalador, triunfante, quase total, abre flancos para deixar enxergar
uma civilização em declínio, com sua parcela de poder político,
econômico e militar diminuindo em relação ao de outras civilizações,
particularmente as da Ásia Oriental. A China emerge exuberante nessa
paisagem. A Índia, mesmo com desníveis estupendos na sociedade, adentra o
ranking de polos de alta tecnologia.
O discurso do Ocidente, com seus tradicionais sermões, já não afeta
interlocutores e parceiros como no passado. O fato é que a última crise
econômica, desencadeada em 2008, serviu para pôr mais lenha na fogueira
que consome o Estado de bem-estar social, locomotiva da aclamada
social-democracia europeia desde o pós-Guerra. Os partidos de esquerda,
ao longo de décadas, tentaram repaginar o modelo, experimentando
fórmulas e resgatando novas abordagens. Com poucas exceções, não têm
sido bem-sucedidos.
Resultado dos conflitos: fortalecimento das correntes de extrema
direita em muitos países, a indicar a eventual conquista de boa
porcentagem (uns 10%) das 751 cadeiras do colegiado no Parlamento
Europeu. A perplexidade se instala. Quem poderia imaginar que os
terrenos da velha democracia europeia fossem acolher novamente a poeira
do deserto da restrição de direitos? Até a França, berço dos direitos
humanos, mostra sua faceta de barbárie. Ali se expande o antissemitismo,
cujos propagandistas querem apagar o calvário do holocausto,
considerando-o "um detalhe na História", como proclama o fundador da
Frente Nacional francesa, Jean-Marie Le Pen, sucedido no comando do
partido por sua filha Marine. A pauta discriminatória é densa: restrição
aos imigrantes, limitação de direitos de estrangeiros, proibição de
manifestações religiosas de muçulmanos (construção de mesquitas,
banimento de burcas), etc.
Os exércitos "nacionalistas-protecionistas" multiplicam-se nos
partidos políticos e agora nas redes sociais, nas quais um grupo chega a
se autodenominar "Adolf-adoradores Neandertais". Na Grécia, o partido
de extrema direita Aurora Dourada utiliza práticas nazistas - milícias
armadas, agressão a imigrantes - e símbolos assemelhados à suástica.
Propõe a reintrodução da pena de morte e a possibilidade de ela ser
aplicada a imigrantes sentenciados por delitos.
O discurso segregacionista se adensa enquanto declina a força dos
partidos que sustentam os pilares da social-democracia; as lideranças,
mesmo em rodízio, não conseguem tapar os buracos abertos pela crise
econômica, estampados nos formidáveis contingentes de desempregados. E
assim germina nas praças das grandes cidades o vírus de um tipo de
violência diferente dos eventos tradicionais (roubos, assaltos e
assassinatos deles decorrentes): a violência dos conflitos étnicos e dos
choques civilizacionais, como a que põe na arena muçulmanos e não
muçulmanos, países afins (islâmicos e vizinhos). Para as agremiações da
direita radical, o Islã e os muçulmanos simbolizam o mesmo papel de
"ameaça externa" que Adolf Hitler associava aos judeus. Comparação
extravagante e sem sentido.
A propósito, a imagem desse truculento e fanático cabo que se vestiu
de ditador para ser o maior facínora da História contemporânea veio a
público na semana passada, por ocasião do evento em memória do
holocausto realizado no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo.
Comovidos, ex-prisioneiros dos campos de concentração desfilavam as
agruras por que passaram. Um horror! Em seis anos de guerra foram
assassinados 6 milhões de judeus - incluindo 1,5 milhão de crianças -,
representando um terço da comunidade judaica da época. Foram massacrados
também comunistas, ciganos, deficientes, homossexuais, testemunhas de
Jeová, doentes psiquiátricos e sindicalistas.
Há 69 anos o Exército soviético abria as portas de Auschwitz, o campo
de concentração com 8 mil prisioneiros. A tétrica imagem jamais será
esquecida: esqueléticos, velhos, doentes, cabeças raspadas, filas de
pessoas cambaleando, famintas, nuas, torturadas, braços tatuados com o
número do registro. Na fachada de entrada, a inscrição Arbeit macht frei
(o trabalho liberta). A rememoração do holocausto é uma maneira de
puxar o passado para o presente, fato importante para alargar as
avenidas do futuro.
Imaginar que por esse mundão afora haja fanáticos que ainda hoje
aplaudem um dos maiores genocídios da História é apostar na hipótese de
Samuel P. Huntington: nas esquinas do mundo desenha-se o paradigma do
"puro caos".
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