A intervenção estatal na economia é inevitável
Peter Boettke - IMBConsiderando-se
a ideologia dominante em nossa época, e todos os incentivos que existem dentro
da moderna governança democrática, a intervenção
do estado na economia (e em todas as áreas da nossa vida), embora não seja algo inevitável, é altamente provável. E isso é de se lamentar.
Neste
pequeno ensaio, o termo 'intervenção estatal' se refere a atos arbitrários do governo para interferir
na economia de mercado. Tais atos
intervencionistas violam as regras gerais de funcionamento da interação social,
regras estas que foram acordadas ao se estabelecer o arcabouço da
governança. A boa sociedade é aquela
cujo arcabouço da governança permite aos indivíduos auferirem os ganhos da
cooperação social sob a divisão do trabalho e, consequentemente, vivenciarem os
benefícios do progresso material, da liberdade individual e da paz — uma
sociedade formada por indivíduos livres e responsáveis, que participam de uma
economia de mercado baseada no sistema de lucros e prejuízos, que têm a
oportunidade de prosperar dentro dela, e que atuam voluntariamente em
comunidades voltadas para a caridade para os mais desvalidos.
A
grande expansão do comércio e da tecnologia ocorrida nos séculos XX e XXI
produziu um nível de riqueza material que permitiu que o custo da intervenção
governamental fosse contrabalançado e permanecesse em grande medida oculto para
muitos observadores. Esta possibilidade
não é um fenômeno novo. Adam Smith já
havia demonstrado que a busca pelo interesse próprio em uma economia de mercado
é tão poderoso, que é capaz de superar "uma centena de obstruções impertinentes
que as insensatas leis humanas frequentemente colocam no caminho".
É
importante enfatizar que o grande progresso material ocorrido nos últimos 100
anos não se deu por causa da expansão
da intervenção estatal na economia, mas sim apesar
destas intervenções. E o ponto da virada
ocorrerá quando o número de 'obstruções impertinentes' aumentar de centenas
para milhares, fazendo com que a economia de mercado não mais consiga ocultar
os custos da insensatez das leis humanas.
Tal
insensatez é simplesmente uma consequência de ideias e interesses. Sendo assim, é necessário primeiramente
abordarmos as ideias que clamam por intervenções estatais para, em seguida,
abordarmos o ambiente institucional que cria os incentivos para esse processo
de criação de políticas.
Mario
Rizzo recentemente listou três grandes ameaças ao argumento em prol de um
mercado desobstruído e livre de intervenções governamentais: (1) ambientalismo
fanático, (2) o ressurgimento do keynesianismo, e (3) a economia comportamental. Mas estas são apenas as mais recentes
manifestações de argumentos que tentam arduamente solapar os princípios do
laissez-faire. À medida que tais
argumentos forem ganhando força, a probabilidade de intervenções estatais na
economia também irá aumentar. A tarefa
do economista comprometido com os princípios da liberdade é reduzir esta
probabilidade.
No
século XX, o crescimento dos governos tanto em termos de escala (gastos em
porcentagem do PIB) quanto de escopo (aumento das atribuições do estado) foi
astronômico. No século XXI, este
crescimento se acelerou ainda mais à medida que as democracias ocidentais
tiveram de lidar com a percepção de tensões geradas pela globalização e pelo
aumento da disparidade de renda entre o Ocidente e o Oriente. No entanto, como vem demonstrando tão
claramente a situação fiscal dos países ocidentais ao longo dos últimos anos, a
escala e o escopo dos governos atuais é insustentável.
Os
gastos governamentais em porcentagem do PIB nas democracias ocidentais subiram de aproximadamente
12,7% em 1913 para 47,7% em 2009. E
os gastos cresceram ainda mais desde 2009 em decorrência do esforço de se
estimular a demanda agregada após a crise financeira global. Os governos gastam porque as economias estão
fracas, e as economias continuam fracas porque o gasto governamental — que
retira recursos das mãos de investidores, empreendedores e trabalhadores
produtivos, e os redireciona na forma de subsídios para grandes empresas e
grupos de interesse e na forma de salários para uma insaciável e gigantesca burocracia,
garantindo assim a boa vida de empresários ineficientes, de políticos e de
burocratas improdutivos que regulam toda a economia — inibe o investimento
privado.
Trata-se
de um ciclo vicioso que tem de ser rompido por meio de uma reavaliação da função
e do escopo do governo em uma sociedade formada por indivíduos livres e
responsáveis. A tarefa política e
intelectual mais importante de nossa era não é a de tentar privar completamente
o estado de recursos, mas sim a de construir o argumento intelectual que resulte
na total retirada de atribuições ao estado.
A
sociedade pode, com efeito, criar o arcabouço propício e efetuar os atos de
caridade que façam com que as ações do estado se tornem desnecessárias. Mas antes disso é necessário demonstrar que
os argumentos que justificam o estado não são tão incontestáveis quanto se
imagina, e que tanto a oferta quanto a demanda por ações do estado possuem suas
fontes em outro lugar.
Intuições morais e a demanda moral da ordem
econômica
Um
dos grandes desafios para uma economia de livre mercado é a crença de que as
discrepâncias de renda e riqueza decorrem de ganhos imorais que são destrutivos
para a ordem social. Dado que conflitos
de classe tendem a descambar em conflitos reais — uma vez que os oprimidos se
rebelam contra a injustiça —, uma demanda por igualdade de tratamento (uma
política que não se caracterize nem pela discriminação e nem pelo controle) se transforma
em uma demanda por igualdade de recursos, sendo que essa transição de um para o
outro ocorre sem muito raciocínio lógico.
Esta
alegação de injustiça está profundamente enraizada em nosso passado
evolucionário. Como observou James
Buchanan, a grande contribuição dos economistas clássicos foi a demonstração de
que a autonomia, a prosperidade e a paz poderiam ser simultaneamente alcançadas
por uma economia de mercado baseada na propriedade privada. Mas foi justamente no auge da confirmação
empírica desta constatação, que a economia de mercado baseada na propriedade
privada passou a ser criticada como sendo uma forma ilegítima de organização
social por causa das injustiças que ela permitia. O desenvolvimento da teoria da produtividade
marginal dos salários não impediu o alastramento da crença moral de que o
capitalismo era injusto. A lógica fria
da ciência econômica entrou em conflito com as emoções ardentes da injustiça
moral.
Por
que existe esta tensão? A ciência
econômica é uma disciplina científica que oferece conjecturas sobre como o
mundo funciona, ao passo que a teoria moral fornece juízos e sugere como o
mundo deve ser. Mas e se nossas
intuições morais estiverem em conflito com as demandas institucionais que devem
ser atendidas para que os indivíduos possam prosperar? Hayek postulou que esta tensão entre nossas
intuições morais e as demandas morais da ordem econômica era um produto de
nosso passado evolucionário.
Culturalmente, os seres humanos foram condicionados por normas sociais
que eram apropriadas a um pequeno grupo que vivia conjuntamente. Porém, com a divisão do trabalho, com a
especialização e com o comércio, as normas de ordem íntima tiveram de dar lugar
a normas mais apropriadas para as interações com terceiros anônimos.
Nosso
dilema não é como garantir uma justa divisão de uma quantidade fixa de renda,
mas sim o de decidir quais regras são apropriadas para governar nossas vidas de
modo a permitir que estranhos vivam bem em sociedade ao perceberem os ganhos
que podem obter por meio das trocas comerciais entre si. A moralidade vigente em um grupo pequeno tem
de ser substituída pela moralidade vigente em um grupo grande. Em vez de empatia moral são necessárias
regras gerais que sejam uniformemente aplicáveis — regras que governem
interações anônimas. Deirdre McCloskey argumenta
que esta mudança de paradigmas — o abandono da moralidade dos antigos e a
ascensão das virtudes burguesas — resultou no milagre do crescimento econômico
moderno, melhorando as vidas de bilhões de pessoas inicialmente na Europa e nos
EUA, e depois se alastrando por todo o mundo.
O
estado não deve ser requisitado a intervir para abolir injustiças relacionadas
às desigualdades de renda que naturalmente surgem em uma genuína economia de
livre mercado. No livre mercado,
indivíduos auferem lucros ao satisfazer as demandas dos consumires — a
perspectiva do lucro não apenas alerta o empreendedor para oportunidades de
trocas benéficas, mas também para ganhos oriundos da inovação tecnológica. A concorrência reduz os custos ao mesmo tempo
em que estimula o aprimoramento da qualidade dos produtos; sendo assim, as
empresas poderão auferir lucros mais altos somente se melhor atenderem as
demandas de seus consumidores. Em última
instância, são os consumidores que determinam a lucratividade de empreendimentos
comerciais ao decidirem se consomem ou se se abstêm de consumir seus
produtos. Não há absolutamente nada de
injusto nesta distribuição. Sim, Bill Gates
possui mais riquezas do que eu, mas somente porque ele soube como melhor
atender as demandas de um número bem maior de indivíduos.
Restringido as depredações privadas, criado
depredações públicas
A
ideia de que é necessário restringir as depredações privadas é utilizada para
justificar a própria existência do estado: sem um soberano para definir e impingir
direitos de propriedade, a sociedade rapidamente se degeneraria em uma guerra
de todos contra todos, e a vida seria sórdida, bestial e curta. Todos estariam em melhor situação se
cooperassem uns com os outros. Mas os
oportunistas estariam ainda melhores se, em decorrência deste arranjo, eles
pudessem confiscar a riqueza criada pela cooperação de todos. Logo, a única maneira de sair deste
equilíbrio predatório é estabelecendo uma terceira parte que seja forte e
impositiva.
Porém,
tais entidades também são capazes de gerar depredações muito maiores e mais
perigosas do que os predadores privados.
Pesquisas feitas nos últimos 25 anos mostram que comunidades podem
coibir a depredação privada criando regras que (a) limitem o acesso, (b)
atribuam responsabilidades e imputabilidades, e (c) instituam punições graduais
a infratores. Em grupos pequenos, isso é
majoritariamente feito por meio da reputação e do ostracismo; já em grupos
grandes, nos quais o agente transgressor não é claro, a dissuasão e a punição
efetiva têm de ser instituídas sem recorrer a uma entidade governamental, ou
pelo menos sem expandir o papel do governo.
Embora
os seres humanos historicamente sempre tenham demonstrado uma propensão à
violência (estupros, pilhagens e saques), também descobrimos maneiras de
superar esta propensão e de constatar os benefícios gerados pela cooperação
social pacífica (permuta, escambo e comércio).
Os arranjos que satisfazem a nossa propensão à cooperação se tornam ricos
e criam pessoas saudáveis e ricas, ao passo que os arranjos que satisfazem
nossa propensão à violência submetem seus indivíduos a uma vida de ignorância,
pobreza e sordidez.
O
estado, na condição de detentor do monopólio geográfico dos meios de coerção,
está na vantajosa posição de depredar e violar os direitos humanos de seus
cidadãos e de empobrecer a população.
Dar poder ao estado para que ele possa restringir as depredações
privadas cria a possibilidade de estimular as depredações públicas. Como enfatizou David Hume, ao criarmos
instituições governamentais, temos de pressupor que todos os homens são patifes
e safados, e que as restrições apropriadas devem ser embutidas no sistema para
impedir um comportamento safado mesmo que safados estejam no poder. Uma economia política robusta, similar àquela
que os economistas políticos clássicos queriam estabelecer, é uma que possua
severas restrições à capacidade predatória do governo, de modo que homens maus,
caso cheguem ao poder, sejam incapazes de fazer grandes estragos.
Falhas de mercado se transformam em
justificativa para impedir os ajustes do mercado
A
teoria das falhas de mercado fornece a justificativa econômica perfeita para a
intervenção do governo em uma economia de livre mercado. As quatro básicas 'falhas de mercado' são:
(1) monopólio, (2) externalidades, (3) bens públicos, e (4) instabilidade
macroeconômica.
Para
os economistas clássicos, o monopólio é um produto da intervenção do estado e
não das forças de mercado.
Lamentavelmente, essa definição foi suprimida no final do século XIX e
início do século XX e deu lugar à teoria de que o monopólio era uma
consequência da concorrência capitalista.
Não obstante todas as evidências empíricas e
todos os desenvolvimentos
teóricos comprovando que a definição dos economistas clássicos é a
explicação mais coerente para o monopólio, a ideia de que o poder monopolista é
consequência do capitalismo desenfreado ainda prevalece.
Os
economistas clássicos argumentaram que os bens públicos de fato resultaram em
uma demanda por um aumento da intervenção do estado na economia. Estradas e pontes, por exemplo, não seriam
ofertadas pela economia de mercado porque os indivíduos iriam se beneficiar
delas, mas, devido à sua natureza, podiam se esquivar de pagar por esse
benefício. Logo, esse problema do
'carona' impediria que uma empresa pudesse ofertar tal serviço de forma
lucrativa. Tal intuição se transformou
na teoria pura dos bens públicos. Mas
existem soluções tecnológicas para o problema do 'carona' e há numerosos exemplos ao longo
da história de barganhas coaseanas que permitiram soluções privadas para
bens públicos.
De
acordo com a teoria dos efeitos externos, a economia de mercado irá com
frequência produzir um excesso de efeitos colaterais ruins — como poluição —
e uma escassa quantidade de bens "bons", pois os custos sociais não estão
alinhados aos custos privados no processo de decisão. A 'mão invisível' seria incapaz de
reconciliar essas diferenças. Mas a
principal razão para esse descompasso é a incapacidade do estado de definir, atribuir
e impingir direitos de propriedade. A poluição é um bom exemplo:
por causa de uma definição obscura e de uma débil proteção dos direitos de
propriedade, indivíduos irão gerar um excesso de poluição; no entanto, se fosse
possível especificar e deixar claros os direitos, os deveres e as punições, a
internalização da externalidade iria reduzir a poluição até seu nível
ótimo. A ineficiência de hoje representaria
uma oportunidade de lucro amanhã para o empreendedor que soubesse corrigir com
eficácia esta ineficiência. A
intervenção estatal, por outro lado, obstrui esse processo de descoberta e de
ajuste de mercado, e, em vez disso, oferece apenas uma solução política.
As
mais significativas alegações para a intervenção estatal na economia atualmente
advém do argumento da instabilidade macroeconômica. O mercado livre e desimpedido é instável e
propenso a sofrer crises periódicas; isso gera incerteza quanto ao futuro,
desemprego e pobreza. Nas economias
ocidentais, a Grande
Depressão destruiu a fé de toda uma geração na economia de mercado. E as crises financeiras americana e europeia novamente estão desafiando essa crença. Porém, em todos esses casos, as políticas do governo
foram as responsáveis pelas distorções econômicas que levaram à crise. A duração e a severidade da
recuperação se devem às políticas monetárias e fiscais fracassadas, e às
crescentes regulamentações e restrições que inibem o processo de reajuste de
mercado.
Problemas de escolha pública, e não de
falha de mercado, são a razão do intervencionismo
Mesmo
que os contra-argumentos e as evidências em prol da não-intervenção sejam
persuasivos, a teoria da escolha pública explica que, por falta de restrições
sobre a ação democrática, as demandas levarão inevitavelmente a intervenções na
economia. Independentemente de qualquer
que seja o argumento intelectual clamando por intervenção estatal, o fato é que
o processo político é governado, do lado da demanda, pelo voto dos eleitores e,
do lado da oferta, pelo comportamento de quem está em busca destes votos.
Sendo
assim, políticos irão priorizar medidas que gerem consequências imediatas e
facilmente identificáveis, e irão postergar ou até mesmo ignorar medidas
sensatas que gerem consequências apenas no longo prazo, mesmo que estas sejam
geradoras de riqueza. E terão os votos
da maioria dos eleitores, que querem justamente isso.
Ademais,
o governo, por definição, detém um monopólio geográfico do uso dos meios de
coerção. Sendo assim, há um forte
incentivo para que lobistas e grupos de interesse capturem essa poderosa
entidade para se beneficiarem à custa do restante da população. O governo pode ser, e será, usado por estas
pessoas a menos que elas sejam efetivamente impedidas de fazer isso.
Uma política sem discriminação ou domínios
O
enigma da atual economia política é descobrir regras definitivas que permitam a
formação de uma sociedade criadora de riquezas.
Adam
Smith já havia argumentado que os governos, tanto os antigos quanto os atuais,
apresentam uma acentuada propensão a praticar incessantemente o truque de
incorrer em déficits, acumular dívidas e inflacionar a moeda para monetizar a
dívida. Na atual crise do mundo
ocidental, este infindável ciclo de déficits, endividamento e desvalorização da
moeda se tornou incontrolavelmente evidente.
Defrontando-nos
com estes artifícios fraudulentos, a única maneira de restringir o estado é
amarrando as mãos dos prestidigitadores que o comandam. Uma medida que seria efetiva já no curto
prazo é a criação de regras para as políticas fiscais e monetárias. Ainda melhor seria retirar responsabilidades
do estado. É verdade que não é possível retirar
a política fiscal da esfera de ação do estado, mas é perfeitamente possível
retirar a política monetária do controle do estado. Não só é possível, como historicamente ela já
esteve fora do domínio do estado em vários países durante certos períodos. Logo, alguma combinação entre restrições
constitucionais, descentralização fiscal e desestatização da moeda pode servir
para reprimir o poder do estado de maneira efetiva.
Sem
essas medidas drásticas, a demanda por contínuas e crescentes intervenções do
estado na economia, na sociedade e nas questões morais e religiosas será uma
constante. É necessário uma
rejuvenescida defesa do argumento liberal-clássico em prol de regras que
amarrem completamente o governo. Somente
assim será possível reduzir a probabilidade de intervenções estatais e
desencadear as energias criativas e todo o poder criador de riqueza do livre
mercado.
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