As masmorras consentidas
MIGUEL REALE JÚNIOR - O Estado de S.Paulo
A pena privativa de liberdade é vivenciada pelo
condenado como castigo, e nem poderia ser diferente. A sociedade, por
sua vez, também reconhece na pena um gravame ao qual se acrescenta o
juízo negativo do preso, etiquetado como "fora da lei".
Esse caráter retributivo inafastável não deve consistir em que à
perda da liberdade se venha a acrescer a perda da dignidade, na
promiscuidade de celas diminutas ocupadas por vários reclusos, sem
trabalho, em nociva e desesperante ociosidade. Destarte, a pena não
pode, de modo algum, ser tão só imposição de sofrimento. Deve-se tentar
proporcionar que, no retorno à liberdade, possa o condenado superar os
fatores que o levaram a delinquir, objetivo a ser alcançado graças ao
trabalho, à educação e à assistência social e psicológica. Como disse
Mariz de Oliveira nesta página, investir na prisão, e não na liberdade,
aumenta a criminalidade. O passo primeiro, todavia, está em eliminar as
condições desumanas do encarceramento, sem o que só há embrutecimento.
Há 30 anos entrava em vigor a Lei de Execução Penal, que constituía
um ponto de partida, e não um ponto de chegada, ao estabelecer metas a
serem alcançadas visando a minimizar os malefícios naturais do
cumprimento da pena privativa de liberdade. Essa lei define as
características dos estabelecimentos prisionais, dispõe sobre o trabalho
prisional, os deveres e direitos dos presos, a disciplina, as diversas
assistências a serem prestadas aos encarcerados, inclusive depois de
sair da prisão, auxiliando a sua volta à liberdade.
As medidas preconizadas na lei não foram aplicadas. Os órgãos da
execução penal deixaram de fiscalizar os estabelecimentos penais e de
promover a melhoria das condições do cárcere, até mesmo para atender às
necessidades básicas dos presos.
O caos do sistema penitenciário voltou às manchetes graças ao celular
irregularmente introduzido no presídio de Pedrinhas, no Maranhão,
trazendo a lume cenas terríveis que perenizam o horror praticado. Ao
enviar a filmagem da barbárie ao mundo exterior, denunciaram a realidade
tenebrosa em que estão jogados e esquecidos como feras.
Se os governos estaduais criaram masmorras, houve também omissão
grave dos órgãos da execução penal, do juiz e do promotor ao Conselho
Penitenciário Nacional, enfraquecido pelo governo, que se fizeram de
cegos, ignorando o dever legal de visitar os presídios mensalmente, como
impõe a lei. Grassou a indiferença ante a situação sub-humana a que
estão entregues os reclusos.
Esse descaso das autoridades se percebe também na superpopulação
carcerária. Conforme o censo penitenciário de 2012, havia no Brasil 521
mil pessoas encarceradas para 311 mil vagas: 260 mil no regime fechado e
51 mil no semiaberto. Os números revelam a impossibilidade numérica de
passagem do regime fechado para o semiaberto, ficando a população
carcerária estrangulada no sistema fechado. Se há, portanto, déficit no
sistema fechado, a grande falha, todavia, está na falta de presídios
semiabertos, de construção mais barata, no formato de institutos
agrícolas ou industriais destituídos de muralhas.
De outra parte, a humanização da reclusão exige a existência de
trabalho, que salva a higidez mental, reduz a pena e concede pecúlio; a
assistência judiciária, que tranquiliza a desesperança do recluso; o
auxílio ao egresso para facilitar, no retorno à liberdade, não tomar o
caminho de novo delito, como demonstram os elevados índices de
reincidência. Essas medidas, infelizmente, são raras nos presídios
brasileiros. Quando se viola a dignidade humana de quem quer que seja,
somos todos atingidos. Maior se mostra essa afronta, porém, ao se
lesionar a dignidade de quem se acha submisso inteiramente à
administração estatal por estar sob custódia.
Dessa maneira, o quadro trágico da superpopulação carcerária e da
ausência de qualquer tipo de assistência ao preso impôs uma reação do
Conselho Federal da OAB, que, com apoio do Instituto dos Advogados de
São Paulo, decidiu debruçar-se sobre o sistema prisional e criar a
Coordenação de Acompanhamento do Sistema Carcerário. A iniciativa do
presidente Marcus Vinicius Furtado Coêlho atende às atribuições da OAB, à
qual incumbe a defesa dos direitos humanos e da Constituição
consagradora do valor primordial da dignidade humana. Caberá, então, a
essa coordenação analisar a situação em cada Estado e ajuizar ações
civis públicas cobrando dos governos melhorias nas condições dos
presídios, para que haja não só alojamento sem promiscuidade, mas também
possibilidade de o preso trabalhar e de ter assistência judiciária.
Ao pugnar pela exata aplicação da Lei de Execução Penal, a OAB pode
atuar de imediato em duas frentes: controlar a ida mensal de juízes e
promotores aos presídios, fator importante para impedimento dos abusos
já habituais, bem como exigir a criação dos Conselhos de Comunidade.
Esses conselhos, compostos por representante da OAB e do Conselho dos
Assistentes Sociais, são organismos capazes de arejar e controlar a
execução penal, como uma janela por via da qual se estabelece o contato
do meio prisional e do preso com a sociedade. Tarefa primordial do
Conselho de Comunidade é incentivar e organizar a assistência ao
egresso.
O condenado, ao retornar à sociedade, não sabe mais andar por suas
próprias pernas, esgarçado em sua capacidade de iniciativa e sujeito à
rejeição mesmo dos mais próximos, precisando de fisioterapia de alma e
de intermediações que ajudem sua reinserção social. Assim, para reduzir a
reincidência, superior a 60%, é vital promover, além de educação e de
assistência psicológica, a assistência ao egresso, visando a facilitar
sua volta à vida livre.
Há imenso caminho pela frente nessa grande cruzada que a OAB se dispõe a realizar em defesa da dignidade humana.
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