terça-feira, 1 de setembro de 2015

Democrático, o mato nos ensina que não somos senhores do universo
Nicholas Kristof - NYT
Nicholas Kristof/The New York Times
Trilha da Cordilheira do Pacífico, na CalifórniaTrilha da Cordilheira do Pacífico, na Califórnia
Outro dia, minha filha e eu estávamos à toa olhando os pornográficos anúncios de imóveis à venda, um monumento à desigualdade norte-americana: uma ilha privada à venda nas Bahamas por US$ 17,9 milhões; um sítio de 360 hectares no Estado de Washington por US$ 11 milhões; e uma propriedade de 33 hectares no Colorado por meros US$ 100 milhões. 
Rapidamente abandonamos essa cobiça, porque tínhamos acabado de passar férias em um terreno ainda mais exclusivo, tão valioso que nenhum gestor de fundos de investimento poderia ter recursos para comprar ou alugar. 
Tínhamos feito trilhas, dia após dia, por lagos de montanha intocados, dormindo ao som do murmúrio dos riachos de neve derretida, recebidos por flores silvestres vívidas em prados alpinos. E toda essa terra é minha! 
Claro, também é sua. É a nossa herança nacional extraordinária, um dos maiores presentes de nossos antepassados ??-as nossas terras públicas. 
Minha filha e eu fizemos caminhadas por um trecho de 330 km da Trilha da Cordilheira do Pacífico na Califórnia central, da passagem de Donner até o Yosemite. O custo? Tudo grátis. 
Na maioria das vezes nos Estados Unidos, estamos cercados pela desigualdade opressiva, quando os 1% mais ricos possuem substancialmente mais do que os 90 % inferiores. Uma forma de fugir disso são os lugares selvagens dos EUA. 
Numa altura em que tantas outras coisas nos EUA são racionadas pelo preço, o igualitarismo prospera nas regiões selvagens. Na trilha, ninguém pode dar carteirada em você -exceto um urso pardo. (Neste caso, dê a preferência!) 
As trilhas na mata constituem um espaço raro nos EUA marcado pela diversidade econômica. Advogados e trabalhadores da construção civil são picados pelos mesmos mosquitos e tomam água dos mesmos córregos; não há nenhum dos sinais usuais de status socioeconômico, pois a maioria dos mochileiros estão de shorts e camiseta, envolvidos por um aroma que deixaria um gambá enjoado. 
O campo oferece as férias mais simples e mais baratas. Minha filha e eu desenrolamos nossos sacos de dormir em uma folha de plástico US$ 5 e ficamos olhando as estrelas cadentes até adormecermos (quando chove, montamos uma lona). Nós carregamos todos os nossos alimentos. E, no final, às vezes tentamos pegar carona de volta à civilização (embora os motoristas acelerem principalmente quando me veem). 
Aqueles que fazem acampamentos de carro muitas vezes pagam taxas. Mas quase nunca há taxas para mochileiros nas regiões verdadeiramente selvagens. Em vez disso, você paga com suor e bolhas. 
A esse respeito, o mato reflete uma visão para os EUA que é mais democrática do que praticamente qualquer outro espaço em nosso país. 
Eu não posso deixar de pensar que, se o Oeste americano fosse descoberto hoje, os trechos mais gloriosos seriam vendidos pelo maior lance. O Yosemite estaria coberto de mansões de final de semana de magnatas da Internet. 
Felizmente, os visionários dos EUA naquela época não pensavam dessa forma. Pessoas como Theodore Roosevelt e Gifford Pinchot, que ajudaram a preservar os nossos parques selvagens, eram pessoalmente ricos e podiam ter propriedades rurais. Mas eles entenderam a importância de preservar para o bem comum algumas partes do patrimônio natural dos EUA, de forma que seu acesso não dependesse de riqueza ou de nome. 
Sua visão refletia uma crença profunda, tanto entre republicanos quanto entre democratas, em serviços públicos que transcendessem a classe. O resultado foi o melhor sistema de escolas públicas do mundo na época, redes de bibliotecas públicas, parques e praias públicos, e mais tarde um amplo sistema de universidades públicas e faculdades comunitárias. 
Infelizmente, essa crença em bens públicos hoje parece antiquada! 
Minha filha e eu estamos atravessando toda a trilha da Cordilheira do Pacífico no curto espaço de tempo em que ela é forte o suficiente e eu ainda não estou decrépito. São 4.200 km do México ao Canadá; nós já percorremos a metade, e espero terminar dentro de cinco ou seis anos.
Minha área favorita desta vez foi o sul da Passagem de Sonora, uma paisagem deslumbrante de picos irregulares, manchas de neve e lagos alpinos. Descobrimos que é mais inebriante do que qualquer microcervejaria. 
Aí, começou a cair granizo. Sim, em pleno verão, bolas de gelo do tamanho de bolas de gude batiam em nós, ardendo mesmo com chapéus e roupas. Logo, o gelo virou a chuva, a trilha virou lama -e fomos lembrados de que uma das grandes coisas do mato é a sua capacidade de trazer desconforto e nos deixar mais humildes. 
Na maior parte do tempo, no século 21, nós dominamos o nosso meio: ajustamos o termostato e a temperatura cai um grau; apertamos um botão, e Taylor Swift canta para nós. É o oposto no mato, que nos ensina constantemente que não somos senhores do universo, e sim blocos de construção do mesmo.
A natureza nos coloca em nosso lugar, no bom sentido. Às vezes deixando nossos dedos gelados. 
O mato nos oferece uma terapia para a alma por ser talvez o último lugar totalmente igualitário nos EUA. Aqui todos nós estamos iguais –diante dos ursos e mosquitos. E há uma lição nisso que pode ser copiada para o resto do país. 
Tradução: Deborah Weinberg

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