O cérebro ‘desenvolvimentista’
Às vezes, a demanda cresce acima da oferta, mas o governo não deixa o mercado se ajustar, represando os preços
Monica de Bolle - O Globo
Não há meio-termo, tampouco conciliação. No Brasil pós-Lula, quase
pós-PT, ou se é uma coisa ou outra. Desenvolvimentista ou neoliberal? O
sujeito liberal não pode gostar de “desenvolvimento”, é o “rico”, o
representante da “elite”, o “rentista”. Já o “desenvolvimentista” é
aquele que sabe do que não gosta, mas não entende aquilo que defende de
modo implícito e apaixonado. O cérebro do desenvolvimentista é peculiar,
inflacionista.
Exemplos neurolinguísticos reveladores das características do cérebro
desenvolvimentista abundam na imprensa brasileira. O córtex, área
responsável pelo pensamento e pela ação, é comandado por reflexões que
remetem obsessivamente às profundezas insondáveis da nova matriz
econômica. A nova matriz, aquela que nos trouxe à situação calamitosa
que atualmente atravessamos. À travessia, nas palavras da própria
presidente da República.
O
corpo caloso do cérebro desenvolvimentista é composto por tipo de
complexidade peculiar. As estruturas que conectam os dois hemisférios, a
lógica, de um lado, a criatividade, de outro, são incapazes de conectar
salários que crescem acima da produtividade com a inflação galopante
que assola o país. Termos como “inflação de custos” proliferam entre
aqueles que se autodenominam defensores do crescimento, inimigos dos
neoliberais que querem… Bem, eles não sabem articular o que os ignóbeis
neoliberais querem. Sabem apenas acusá-los de serem “contra o povo”, “a
favor dos bancos”. “Inflação de custos” é expressão para lá de enganosa.
Se os custos sobem pressionando preços, é porque em algum lugar a
demanda cresce acima da capacidade de oferta. Às vezes, a demanda cresce
acima da oferta, mas o governo não deixa o mercado se ajustar,
represando os preços. Tal atitude desarranja o balanço das empresas e o
papel dos preços como sinalizadores de abundância e escassez, situação
insustentável. Mais dia menos dia, os tais dos custos têm de ser
corrigidos, levando à escalada inflacionária que hoje testemunhamos. O
cérebro desenvolvimentista, entretanto, não faz a conexão entre um lado e
o outro.
O sistema límbico, a parte mais primitiva do cérebro, responsável
pelas emoções, reage de modo visceral no cérebro desenvolvimentista.
Incandesce quando processa palavras como “capitalismo”, “mercado”,
“expectativas”. Acalma-se apenas quando o tronco encefálico, a estrutura
mais simples do cérebro, pulsa com os axônios do “endividar-se para
crescer” e o “expandir o crédito público para impulsionar o
investimento”.
O cérebro desenvolvimentista não processa que o déficit público
brasileiro está em quase 9% do PIB, que a dívida não comporta qualquer
manobra para fingir que é possível crescer sem fazer as reformas
necessárias para restaurar a higidez fiscal. O cérebro da inflação de
custos tampouco entende que suas pregações apaixonadas levam apenas a um
resultado: a alta da inflação.
Vá lá que muitos cérebros desenvolvimentistas tenham se formado
depois da longa travessia, a verdadeira travessia, a do combate
inflacionário. Mas, fica a pergunta: é razoável que economistas de boa
formação abandonem os preceitos básicos de sua profissão para apregoar o
indefensável? O cérebro humano exibe plasticidade única na natureza.
Talvez seja possível crer que o cérebro desenvolvimentista passe por
transformações súbitas após testemunhar o desastre da economia
brasileira. A esperança, afinal, a esperança.
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