Adeus, Lula' é um filme sobre implosão, separação e pulverização
Demétrio Magnoli - FSP
"Adeus, Lenin!", filme satírico de Wolfgang Becker, ilumina o
deslocamento psicológico causado pela queda do Muro de Berlim nos
alemães orientais idosos, cujas referências cotidianas estavam todas
definidas pelo "socialismo real". As confissões de Palocci, uma explosão
fatal na imagem pública de Lula, pedem um roteiro sobre a orfandade da
esquerda brasileira, que não se preparou para viver sem seu patrono de
quatro décadas.
Palocci é um furacão de categoria máxima.
Nos bons tempos, antes do "mensalão", disputava com Dirceu a condição
de sucessor de Lula –e tinha a preferência do próprio Lula. O
ex-ministro da Fazenda, porém, não possui a têmpera de Dirceu ou dos
"apparatchiks" do núcleo duro lulista, como Delúbio e Vaccari. Ele
desconhece a "omertà", o código de honra que bloqueia a estrada da
delação. Por isso, começou a falar, convertendo-se subitamente de "herói
do povo brasileiro" (segundo o congresso do PT paulista) em traidor "calculista, frio e simulador" (segundo Lula).
Lula e os seus creem que a política está acima de tudo, inclusive dos
tribunais. A tese tem alguma verdade: as implicações judiciais das
confissões de Palocci permanecem turvas, mas suas consequências
políticas são devastadoras. A sentença do traidor sobre o "pacto de
sangue da propina" tem maior potencial destruidor para a candidatura de
Lula que as sentenças de Moro sobre um certo tríplex ou um célebre
sítio. Palocci fecha um ciclo histórico no qual a esquerda não precisou
se ocupar com os problemas cruciais da unidade e do rumo ideológico.
O projeto do PT reuniu as heterogêneas correntes da esquerda, oferecendo
um leito comum para sindicalistas, movimentos sociais, militantes
católicos da "teologia da libertação", castristas de diversos matizes e
grupúsculos trotskistas. Lula serviu como traço de uma unidade que
jamais derivou de consensos sólidos nos planos dos valores, da doutrina
ou das estratégias. Na falta desse mastro, nada deterá a fragmentação em
curso, ainda que venha a ser disfarçada sob o rótulo de uma "frente
popular" de partidos e movimentos. A candidatura Haddad, plano B do
lulismo, pode até evitar o naufrágio da nau petista, mas carece de força
gravitacional para restaurar a moldura unitária que se despedaça.
O lulismo garantiu a unidade por meio da virtual supressão da
divergência ideológica. No percurso, a curva decisiva foi a chegada de
Lula ao Planalto, que cancelou o já rarefeito debate de ideias no
interior do PT. Dali em diante, as correntes petistas engajaram-se na
ocupação de cargos no aparelho de Estado, enquanto os "intelectuais de
esquerda" aceitaram a humilhante tarefa de justificar tanto as
oscilações de rumo do governo quanto as pútridas alianças do capitalismo
de compadrio patrocinadas por Lula. O ex-presidente carrega a culpa
direta pelo "pacto de sangue" confessado por Palocci, mas a
responsabilidade política espraia-se muito além dele, até doutos
acadêmicos que nunca se beneficiaram do vil metal.
Unidade e ausência de debate ideológico –as duas coisas estão ligadas
como as lâminas de uma tesoura. O lulismo salvou a esquerda das forças
centrífugas provocados pela discussão de temas como o lugar das empresas
estatais, a produtividade da economia, a curva de sustentabilidade
fiscal, a qualidade dos serviços públicos, o imperativo da reforma
política. Lula construiu uma cápsula encouraçada, isolando a esquerda
num santuário. A prova de seu sucesso está à vista de todos, nos artigos
vexatórios dos "companheiros de viagem" que ainda defendem a política
econômica dilmista ou celebram a calcificação ditatorial do regime
venezuelano.
"Adeus, Lula" é um filme sobre implosão, separação, pulverização. Depois
de Palocci, a unidade está morta. Com sorte, do desfecho ressurgirá o
debate estancado. Ergamos um esperançoso brinde ao traidor.
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