sábado, 1 de fevereiro de 2014

Em apoio a protestos, manifestantes ucranianos fazem “itinerário revolucionário” de ônibus até Kiev
Claire Gatinois - Le Monde
Sergei Supinsky/AFPEm Kiev, policiais cortam madeira, enquanto outros se posicionam em frente a manifestantes 
Em Kiev, policiais cortam madeira, enquanto outros se posicionam em frente a manifestantes
O encontro foi marcado para as 22h, no shopping center King Cross, na periferia de Lviv, a grande cidade do oeste da Ucrânia. Código de adesão: AA 3602 BK, número da placa do ônibus que nos levará cerca de 500 quilômetros para o leste. Destino: Maidan, no centro de Kiev, em apoio à "revolução" do povo ucraniano.
É dia 28 de janeiro, terça-feira, mas todas as noites acontece a mesma rotina meticulosamente orquestrada a partir de Lviv, conhecida por seu nacionalismo. Todos manifestantes contrários ao "bandido" Viktor Yanukovitch ou apaixonados pela União Europeia foram buscar sua passagem com Irena Yarmko, uma agente imobiliária que desde terça-feira passou a ser organizadora de "itinerários revolucionários". "É um dever de cidadão", ela explica, cobrando no saguão do hotel Wien, no centro da cidade, as 100 hryvnias (quase R$ 30) necessárias para a passagem de ida e volta.
No estacionamento coberto de neve do King Cross, em frente ao supermercado Auchan, Stepan, de 22 anos, e seu amigo Jurij, de 25, esperam pela hora de partida. Eles só ficarão um dia em Maidan. "Minha mãe já teve um treco quando eu disse que estava indo, então só vou ficar uma noite", brinca Stepan, de gorro de pele na cabeça.
Mais adiante, três homens fortes descarregam do porta-malas de um carro um grande saco repleto de coletes à prova de bala, prontos para serem transferidos até um dos três carros fretados naquela noite. "Presente para a revolução!", diz um deles. Um presente de 100 euros cada, quase um salário mínimo ucraniano, financiado coletivamente pelo povo de Lviv, determinados em sua maioria a acabar com "o sistemaYanukovitch" e a corrupção que o acompanha.


Medo de ser preso ou sequestrado nos hospitais

São 22h15 e todos começam a tomar seus lugares. Slavko, jovem pai de família, proprietário de um bar em Lviv, está em seu sétimo "passeio" por Kiev. Ele se senta, aliviado. A viagem será feita em um ônibus espaçoso e não, como da última vez, em uma marshrutka, uma dessas vans que deixam entrar o frio gelado.
O ônibus pega a estrada principal na direção de Kiev, oito horas de trajeto atravessando as planícies e vilarejos com suas igrejas de domos dourados. As pessoas começam a desembrulhar seus sanduíches, e um cheiro de alho e picles toma conta do ônibus. Atrás de nós, Andreij, treinador de judô, e Yrij, empresário, conversam sobre futebol. Os dois vêm do mesmo vilarejo perto da fronteira polonesa, a 90 quilômetros dali. Eles leram na imprensa que Lviv estava organizando trajetos regulares "em apoio ao povo ucraniano", então eles vieram e ficaram "pelo menos cinco dias em Kiev". Eles dormiram na prefeitura, ou na Casa dos Sindicatos, eles ainda não sabem. Pouco importa. Em frente, as pessoas falam –mal-- de Viktor Yanukovitch e –bem-- de Vitali Klitschko.
O ambiente é tranquilo. E masculino. Normalmente, a viagem é proibida para as mulheres, por ser "perigosa demais". Desde que o governo começou a reprimir os manifestantes, as pessoas passaram a temer os bloqueios de estrada dos Berkout --as forças especiais da polícia. No entanto, a sessentona Irina enfrentou a proibição. Foi sua igreja que a enviou. A enfermeira faz parte das "mãezinhas" de Maidan que estão cuidando dos manifestantes feridos. Irina trabalhará "em um local secreto", ela explica, desconfiada, escondendo seu chapéu crème com pontas prateadas.
Nos últimos dias foi recomendado aos manifestantes feridos que evitassem ir até os hospitais, pelo risco de serem presos pelas forças policiais ou sequestrados.
Na parte da frente do ônibus, as pessoas dão risada. Provavelmente as doses de vodca têm algo a ver com isso, mas ninguém exagera. Foi-se o tempo em que os ônibus ficavam repletos de estudantes exaltados que consideravam a Praça Maidan "uma casa noturna", constata Slavko.
Os mortos e a repressão do mês de janeiro mudaram o perfil dos viajantes. Os pais de família de 35 a 50 anos substituíram os jovens empolgados com os acontecimentos. As "bactérias" desapareceram. As "bactérias", explica Slavko, são esses ucranianos sem convicção, pagos pelos partidos políticos uma hora para apoiar a Praça Maidan, outra hora para se opor a ela.
Com uma buzina empolgada, o ônibus cumprimenta um pequeno grupo de voluntários da "AutoMaidan" parados na beira da estrada, no frio gelado, com as mãos sobre um braseiro, em meio a bandeiras ucranianas. Eles bloqueiam a passagem de eventuais forças policiais.
Uma hora da manhã. O vilarejo de Busk agora ficou para trás. O ônibus faz sua primeira pausa em um posto de gasolina perdido no meio do nada. Reconhecemos uma celebridade: um "jogador de futebol profissional", um galalau de dois metros de altura que se permite uma última volta em Maidan antes de voltar à temporada de jogos e aos treinos.


"A Ucrânia continua sendo minha pátria"

O sono toma conta de todos, exceto pelos que estão na dianteira do ônibus, que continuam a dar risada. Talvez pelo nervosismo. Nos últimos dias não houve mais violência, mas ninguém está realmente se sentindo à vontade.
Slavko se pergunta "por que ele fez tudo isso". Esse homem de trinta e poucos anos viveu por anos no Reino Unido e só voltou para a Ucrânia em 2010. Ele decidiu que seu filho não crescerá no país, ainda que Viktor Yanukovitch deixe o governo. Mas "a Ucrânia continua sendo minha pátria", ele pensa, lembrando que seu pai passou quinze anos de sua vida na Sibéria, sendo quatro deles fazendo trabalhos forçados. O ônibus todo dorme.
Às 5h58, o ônibus inteiro acorda de sobressalto: chegamos a Kiev. Todos cochicham, onde estamos exatamente? De repente, sentimo-nos como se fôssemos caipiras perdidos na capital. A visão de uma estação de metrô tranquiliza todo mundo: "Zhytomyrska", na linha vermelha que vai direto até Maidan. O pequeno grupo se dispersa. Prometemos nos reencontrar mais tarde. Aprendizes de revolucionários e trabalhadores ainda sonolentos se misturam. Nove paradas mais tarde, chegamos a Maidan. Ao subir as escadas que levam até a praça, podemos ouvir o canto ortodoxo de um Pai Nosso. Depois, um "glória à Ucrânia". Nasce o dia em Maidan.

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