Vácuo e descontrole
Marco Aurélio Nogueira - O Estado de S.Paulo
Não deveria ter sido preciso a trágica morte do
cinegrafista Santiago Andrade para que nos déssemos conta de que a
situação é complicada. O País parece saturado da falta de opções, ouve
com tédio os discursos políticos, no máximo, com aquela vã esperança de
que algum mágico dê jeito nas coisas. O clima de exasperação, a rejeição
passional da divergência e a ausência de debate público bloqueiam quase
tudo. As manifestações estão aí, mas a qualquer momento podem derivar
para o caos ou esfriar. Também elas carecem de sustentabilidade e eixo.
Desponta no horizonte uma enorme crise social, que não derrubará governos, mas os desafiará como nunca.
Um olhar que não desça às profundezas da sociedade pode achar que
tudo vai bem, melhor do que antes, que o País se tornou um player de
respeito no mundo e a população está feliz. Não considera que novas
modalidades de ação, novos protagonistas e demandas pressionam os
governos. E se as deficiências estruturais do País - na educação, nos
transportes urbanos, na saúde, nos aeroportos - não são atacadas com
determinação, as pessoas se irritam e se frustram, adubando o terreno
para todo tipo de explosão.
Foi esse o recado das ruas de junho de 2013. Poderia ter havido ali
uma inflexão positiva, um salto na compreensão crítica do País que se
vem formando, a abertura de uma nova dialética Estado-sociedade. Não se
ouviu, porém, o recado.
Em vez disso, seguiu-se com a mesmice de sempre, com o ufanismo que
nos caracteriza, a subserviência ao sistema internacional, aos bancos e
aos mercados, a obsessão pelo crescimento. Em vez de inventarmos um modo
nosso de fazer as coisas - por exemplo, de organizarmos a Copa, para
ficar com algo simples e oportunista -, compramos um pacote fechado.
Fazemos de conta que não há desperdício, que as prometidas obras de
infraestrutura virão no devido tempo, que os bilhões de reais
canalizados para construir ou reformar estádios são a precondição para
que o País organize "a melhor Copa de todas". As pessoas não acreditam.
Preferem esperar para ver. Não há correntes sociais ativas para
sustentar o que se decide fazer no País.
As coisas não pioram, vão até melhorando em alguns aspectos. Mas
faltam entendimentos para que se dê um arranque expressivo. De dentro e
de fora do governo federal ouve-se que o Estado precisa gastar menos,
como se fosse possível reduzir ou redefinir despesas públicas a esta
altura do campeonato. Se a vida de parte dos mais pobres melhorou,
graças às políticas de incentivo ao consumo e à Bolsa Família, daí virão
mais exigências de gasto, não menos. Surgirão arranjos inusitados e
expectativas que nem sempre poderão ser atendidas. As pessoas quererão
mais saúde, educação e transportes, e tudo com mais qualidade. Coisas
que exigem investimento, políticas e coordenação estatal - um projeto de
País, em suma, que é precisamente o que mais falta.
As manifestações têm-se sucedido. Vão de rolezinhos a espasmos
cívicos e protestos contra a Copa. Em todas, as agendas são idênticas:
transparência, respeito a direitos, reconhecimento, espaços de lazer,
mobilidade urbana, outra política. Em todas, o despreparo policial
desaba sem muito critério sobre as multidões e se faz acompanhar de uma
violência "simbólica" que o reverbera e amplifica, adicionando a ele o
despreparo dos manifestantes. Destaca-se a tragédia da hora, esquecem-se
as mortes enfileiradas ao longo dos anos, o cotidiano pesado, a falta
de perspectiva dos jovens, o ambiente sociocultural que não agrega.
Joga-se luz sobre os violentos sem que se expliquem as raízes da
violência e o porquê de ela estar-se convertendo em opção de vida.
É equívoco grosseiro usar a situação para atacar o governo federal,
como se fosse ele o culpado pelo descontrole e pela violência que estão
por aí. Mais polícia e repressão não solucionarão nada, assim como leis
"antiterrorismo" ou contra mascarados. Poucas vozes políticas se fazem
ouvir. O Congresso Nacional nem sequer se manifesta. A manipulação vem
de todos os lados. Fatos soltos, interpretações descabidas e acusações
levianas passam a servir de base para que se façam ilações absurdas. Ora
se atinge um deputado, como Marcelo Freixo (PSOL-RJ), ora a culpa por
tudo seria da mídia. Há quem glamourize os black blocs como filhotes
destemperados da desobediência civil e quem se aproveite deles para
desgastar o regime ou propor endurecimento político. Poucos consideram o
estrago que a "tática" causa à democracia.
O País parece estar num vácuo político, no sentido preciso de que
está sem direção e coordenação. Se há vácuo, é porque não há matéria que
preencha o espaço: governo e oposição, instituições e sociedade civil.
Como a vida muda depressa, o descontrole tende a ser grande. Não se
trata do governo federal, mas de crise dos governos, das instituições,
do Estado em seu conjunto, crise da cultura e de uma hegemonia. Isso se
expressa, por exemplo, no afã esteticizante e performático dos
manifestantes atuais. Eles não aceitam o modo "tradicional" de
protestar. Querem se mostrar, aparecer, e máscaras são usadas também
para isso.
Não é, porém, o fim do mundo. Numa situação complexa, difícil de ser
governada, não se deveria estar a desancar instituições - igrejas,
partidos, entidades, órgãos de imprensa; o melhor seria exigir que
cumpram alguma função construtiva. Nossos políticos desprezam a
gravidade do momento, seguem batendo uns nos outros, não ensaiam nenhuma
aproximação ou acordo. Estão picados pela disputa eleitoral que se
aproxima. Só contribuem para complicar o quadro.
É preciso decifrar essa paisagem que desponta na neblina. O levantar
de poeira, a culpabilização e as teorias conspiratórias não ajudam a que
se enfrente uma condição emergencial. Serenidade, clareza, apuração
rigorosa de fatos, perspectiva política e união dos democratas são o que
temos de melhor: recursos indispensáveis.
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