Uma fábula de Esopo recontada por Marina Silva: “A Socialista e a Banqueira”
Reinaldo Azevedo - VEJA
Tudo
bem, gente! Só o Brasil tem jabuticaba, ué. Pororoca, como a nossa,
também não há igual. Somos ainda a única democracia do mundo que não tem
um partido conservador viável. E “única” quer dizer “única” mesmo — não
há país pequeno ou grande que nos imite nisso. O Gigante Adormecido,
afinal, ao acordar, haveria de dar ao mundo alguma singularidade. E há o
risco de inovarmos num outro particular: eleger, pela terceira vez, um
presidente — ou “presidenta”? — sem partido. Já houve Jânio Quadros
(udenista apenas no papel; ou “a UDN de porre”) e Fernando Collor. E não
cessamos de dar novas jabuticabas ao mundo. Dois títulos competem nos
sites nesta manhã. Um deles: “Luiza Erundina vai coordenar campanha de Marina Silva”. O outro: “Marina acena ao mercado com lei para BC autônomo”.
Erundina é a deputada do PSB que é, de fato, socialista. A autonomia do
Banco Central está sendo garantida, em entrevista à Folha, por Maria
Alice “Neca” Setúbal, sócia do Itaú e “marineira” convicta.
Isso é
“Terceira Via”? É uma fábula de Esopo: “A Socialista e a Banqueira”? É
só uma sintoma de, sei lá como chamar, desordem ideológica? Vai saber.
Na entrevista concedida à
Folha, Maria Alice fala claramente em nome de Marina. Se o segredo de
aborrecer é dizer tudo, então digo. Não se devem conceder licenças
exclusivas a políticos. Quando isso é feito, eles vão pegando balda e
começam a perder a noção de limites. Aconteceu com Lula. Durante muito
anos, só ele podia dizer e fazer certas barbaridades. Olhem no que deu.
Qualquer pessoa minimamente razoável é obrigada a fazer esta pergunta: “Que
outro candidato no Brasil teria um banqueiro — ou sócio de um dos
maiores bancos do país — concedendo uma entrevista em nome de uma
presidenciável e assegurando a independência do Banco Central, matéria
que, obviamente, é do interesse do setor financeiro?” Observem:
quando digo “ser do interesse”, não estou a demonizar este setor, a
tratá-lo como larápio ou cúpido. Estou apenas deixando claro que falta a
esse evento o necessário decoro. Falasse, então, a própria Marina a
respeito. Houvesse alguém com esse perfil falando em lugar de Aécio ou
Dilma, qualquer um deles seria massacrado pela imprensa. Mas Marina,
sabem como é, anda acima das águas…
Maria
Alice, a conselheira — e, segundo Walter Feldman, membro do grupo de
“pensadores” de Marina — aponta vários problemas em Dilma. Entre eles,
este: “O século 21 é o século do
novo. Acho que a Dilma reproduz uma liderança masculina. A Dilma é
aquela pessoa dura, que bate na mesa, que briga, que fala que ‘eu vou
fazer, eu vou acontecer, eu sei’. Isso é, no estereótipo, do coronelismo
brasileiro, do político tradicional que vai resolver tudo sozinho”.
Tenho dificuldade de lidar com essas categorias; não sei o que isso
quer dizer. Sei que Marina assumiu a candidatura, e o PSB está rachado.
Pergunto a Neca se a mansidão não pode ser intolerante. Acho que pode.
A porta-voz informal de Marina diz coisas um tanto perigosas, como esta:
“Hoje, temos uma presidente
cujo perfil é de gestão, pragmático, racional. Talvez o oposto da
Marina. E o resultado que nós temos é bastante insatisfatório. Toda essa
fala da Dilma gestora se desfez ao longo de quatro anos. O mercado
visualizando as pessoas que estão ao lado dela vai ter muito mais
segurança. Ela já tem vários economistas. Terá outras, mais operadoras.”
Destrincho.
Em primeiro lugar, afirmar que Dilma tem perfil de gestão, pragmático e
racional beira a sandice. O que ela fez no setor elétrico, por exemplo,
se encaixa em um dessas palavras? E os sucessivos desastres nos marcos
para a privatização das estradas? Neca está errada: a presidente é uma
péssima gestora; não é pragmática, mas ideológica, e está longe de ser
um exemplo de racionalidade — e de racionalismo. Ocorre que Marina Silva
não é diferente de sua adversária, embora divirjam na agenda. A fala
sugere, santo Deus!, que a líder da Rede é ainda menos gestora, menos
pragmática e menos racional.
Posso ir
adiante: Neca, a sócia de um dos maiores bancos do país, parece achar
que gestão, racionalidade e pragmatismo são maus conselheiros. Confio
que não é isso o que pensa a direção do Itaú, de que sou correntista —
aliás, prefiro que ela fique na Rede… Mas voltem à fala: a entrevista é
uma espécie de “Carta ao Povo Brasileiro” de Marina, agora sem
intermediários. Neca não esconde que o objetivo é mesmo acalmar os
mercados.
Eu não
tenho taras ideológicas, só convicções. Essa história de “independência
do Banco Central” — ainda que os mercados festejem nesta sexta — não
pode ser um fetiche. Houve, sim, erros na condução da política monetária
no Brasil. Mas digamos que ela tivesse sido 100% correta, segundo os
melhores manuais: a economia brasileira estaria muito melhor do que está
hoje? Isso é piada! De resto, há alguns taradinhos que acham que um
Banco Central só erra quando baixa a taxa de juros. Pois é… O nosso já
errou elevando-a. E aconteceu durante a crise nos EUA, na gestão do
festejado Henrique Meirelles.
Isso a que
estão chamado “Terceira Via” é, por enquanto, sarapatel ideológico
ancorado numa figura que exercita o que eu chamaria de messianismo
pós-moderno. Em que ele consiste? Marina seria capaz de conciliar todas
as contradições com a força de sua pureza.
“Pô,
Reinaldo, pare com isso! Melhor a Marina do que a Dilma! Está na hora de
tirar essa gente daí…” Como vocês sabem, por mim, essa gente nunca
teria entrado. Mas nem tudo o que não é PT me serve. E me serve menos
ainda algo que, sob certos aspectos, pode ser ainda pior. A
irracionalidade do PT, vá lá, é deste mundo. Ademais, quanto mais
insistirem em tratar Marina como um ser etéreo, mais eu meu ocuparei de
suas características terrenas.
A
propósito: a entrevista de Neca para acalmar os mercados, creio, se
insere numa estratégia pragmática e racional, não e mesmo? Ou a dita
“independência do Banco Central” é uma ideia soprada pelo Espírito da
Floresta?
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