O Brasil tornou-se o primeiro e único país do mundo a reconhecer o Estado Islâmico
DEMÉTRIO MAGNOLI - FSP
Você pensa que Dilma Rousseff foi a Nova York gravar filmes de propaganda eleitoral no palco iluminado da Assembleia Geral das Nações Unidas? Talvez fosse esta a intenção exclusiva, mas a viagem presidencial deixou um inesperado rastro de destruição. Em dois dias, o governo provou a tese de que o Brasil não pode almejar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Entre as 2.511 palavras de um discurso
provinciano, obviamente revisado por João Santana, não apareceu o termo
"terrorismo". Contudo a peça desviou-se do roteiro principal para,
mirando a guerra em curso contra o Estado Islâmico (Isis), diagnosticar a
inutilidade do "uso da força" e a natureza contraproducente da
"intervenção militar". Na entrevista à imprensa internacional, a posição
brasileira foi pintada com tintas mais nítidas, o que resultou numa
obra quase surrealista.
Dilma condenou diretamente os bombardeios
na Síria, divergindo da maioria dos países do Oriente Médio, que
participam da operação ou a respaldam politicamente. O tom da condenação
ficou vários decibéis acima do utilizado pela Rússia e pelo Irã, que se
limitaram a registrar protocolarmente a violação de uma insubstancial
"soberania síria". O próprio regime sírio, interessado no
enfraquecimento militar do Isis, preferiu mesclar esse registro
inevitável com uma declaração de apoio ao "combate contra o terror". É
só o conforto gerado pela irrelevância diplomática e pela distância
geográfica que propiciou à presidente a chance de exercer o curioso
direito à irresponsabilidade.
O Brasil tem razões para introduzir
temas que não se inscrevem no discurso de Washington sobre a versão 2.0
da "guerra ao terror", recordando os desvios abomináveis da versão
original, de George W. Bush. Há pouco, o conservador britânico Boris
Johnson, ex-prefeito de Londres, sugeriu casualmente descartar a
presunção de inocência de qualquer um que viaje à Síria ou ao Iraque sem
notificação prévia, transferindo ao "suspeito" o ônus de provar que não
participa da rede do terror. Os ecos de Guantánamo e da autorização da
tortura devem servir para guarnecer a vulnerável fortaleza das
liberdades civis. Dilma, porém, não pronunciou nenhuma palavra sobre os
princípios da lei nas democracias, escolhendo a estrada da delinquência
diplomática.
Na entrevista, Dilma jogou num saco abrangente
coisas tão distintas quanto a invasão do Iraque, em 2003, a operação
aérea na Líbia, em 2011, a ofensiva de Israel na Faixa de Gaza, em
julho, e os bombardeios contra o Isis, para repudiar "o morticínio e a
agressão dos dois lados", referindo-se à coalizão liderada pelos EUA (um
lado) e ao Isis (outro lado). No jargão diplomático, "dois lados" é a
senha para o conflito entre Estados ou, no mínimo, entre forças
combatentes legítimas. Por essa via, incidentalmente, e salvo algum
desmentido futuro, o Brasil tornou-se o primeiro e único país do mundo a
reconhecer o Estado Islâmico. Diante disso, o que é aquele célebre 7 a
1?
"Dois lados." Nessa linha, nossa presidente ofereceu sua
alternativa à operação de guerra: "o diálogo, o acordo e a intermediação
da ONU". Como, simultaneamente, pela voz de seu secretário-geral, a ONU
solidarizava-se com os bombardeios, Dilma colocou o Brasil em rota de
colisão com as Nações Unidas.
A ideia de "diálogo" com o Isis,
formulada quando os terroristas decepavam mais uma cabeça, talvez agrade
ao antiamericanismo primitivo que hipnotiza as correntes mais
anacrônicas da esquerda brasileira, mas não protegerá os curdos, as
minorias religiosas e as mulheres ao alcance da fúria jihadista.
Entretanto o governo brasileiro obrigou-se moralmente a levá-la adiante
--e, parece-me, temos em Marco Aurélio Garcia a figura ideal para
cumprir a missão de plenipotenciário de paz em Mossul (Iraque) ou Raqqa
(Síria), as sedes do califado.
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