Neil MacFarquhar - NYT
Sergey Ponomarev/The New York Times
Rússia vem discutindo como lembrar das vítimas de gulags como o do Monastério Solovetski
Yuri Brodski, que dedicou sua vida a expor os segredos sombrios do
antigo Mosteiro Solovetski, apontou para uma pequena e suja janela para o
pátio, bloqueada por um muro irregular de tijolos.
Os tijolos eram um raro resquício das quase duas décadas em que o mosteiro, parecido com um forte, serviu como o primeiro gulag da União Soviética, lembrete de um período horrível inicialmente detalhado pelo historiador e ganhador do Nobel, Aleksandr Solzhenitsyn.
Os tijolos eram um raro resquício das quase duas décadas em que o mosteiro, parecido com um forte, serviu como o primeiro gulag da União Soviética, lembrete de um período horrível inicialmente detalhado pelo historiador e ganhador do Nobel, Aleksandr Solzhenitsyn.
"Todos os traços do
campo de trabalhos forçados estão sendo gradualmente destruídos e
removidos", disse Brodski, uma figura de cabelo grisalho curto e
despenteado.
A Rússia vem discutindo como lembrar das vítimas dos gulags, um processo emocionalmente carregado que culminou neste mês, quando o primeiro-ministro Dmitri Medvedev reconheceu os milhões que sofreram sob a repressão política soviética.
Os ativistas se sentiram encorajados pela diretriz que ele assinou, mas expressaram várias reservas. Primeiro, ela essencialmente não é vinculante, sem peso legal ou orçamentário. Segundo, foi Medvedev quem a assinou, não o homem que importa mais na Rússia, o presidente Vladimir Putin.
Finalmente, ela contradiz o que de fato vem acontecendo em lugares como Solovetski: a minimização do legado da opressão. Pela primeira vez desde a queda do comunismo, nem a igreja e nem o governo enviaram um representante para uma cerimônia anual em 7 de agosto, em honra às vítimas do campo.
Igualmente, o Perm-36, um ex-gulag que foi preservado como um museu da repressão política, foi transformado neste ano em um focado na história do trabalho no campo. Uma exposição recente exaltava as realizações na produção de madeira do Perm-36.
Essa diluição tem se tornado mais predominante, especialmente em locais agora controlados pela Igreja Ortodoxa Russa. Os críticos dizem que a igreja contorna as questões de prestação de contas ao enfatizar o papel eclesiástico desses locais.
Essa tendência produziu um intenso cabo-de-guerra em torno das ilhas remotas onde o mosteiro fica situado. As Ilhas Solovetski, também conhecidas como Solovki, ficam no Mar Branco, 160 quilômetros abaixo do Círculo Polar Ártico.
O debate coloca monges e peregrinos religiosos contra aqueles que acreditam que o local deveria ser consagrado aos inúmeros prisioneiros políticos que morreram ali. Os aldeões que temem ser expulsos pela igreja também foram atraídos para o debate, assim como as operadoras de turismo que promovem a beleza da área e chance de verem baleias-brancas e vida selvagem. A Unesco também está envolvida, alertando que a reconstrução extensiva pode ameaçar o status do mosteiro fortificado, fundado em 1436, como Patrimônio da Humanidade.
A igreja vê o mosteiro como um testamento importante do poder da fé, por ter sobrevivido por tanto tempo em um local remoto.
"Muitos templos sagrados nacionais foram criados em silêncio como do deserto, mas com o passar do tempo, cidades cresceram em torno deles", disse o abade do mosteiro, Archimandrite Porfiri, em uma resposta por e-mail a perguntas por escrito. "Em Solovki, é fácil encontrar solidão, tão importante para a alma."
Ele caracterizou o período do gulag, de 1923 a 1939, como um mero interlúdio na longa história do mosteiro. Entretanto, ele avulta para aqueles que desejam honrar suas vítimas.
Nos dias longos do verão ártico, é difícil imaginar as cenas distópicas descritas pelos sobreviventes do campo. A ilha principal, coberta por densas florestas de pinheiros e pontilhada por lagos, tem um ar bucólico, apesar de dilapidado. Vacas e cabras pastam livremente no lado externo dos muros do mosteiro, em uma aldeia com população de cerca de 1.000 habitantes.
As ilhas eram consideradas sagradas muito antes do mosteiro ser construído; culturas pré-cristãs deixaram complexos labirintos de pedra, construídos como portais para o pós-vida. As muralhas de granito do mosteiro, equipadas com torres, foram concluídas por volta de 1601, e suportaram um bombardeio naval britânico durante a Guerra da Crimeia.
Quando Brodski, 69, visitou as ilhas pela primeira vez em 1970, ainda restavam muitos traços do campo de trabalhos forçados há muito fechado. Um engenheiro e fotógrafo, Brodski passou a documentar tudo. Ele rastreou os sobreviventes do campo por toda a Rússia, em uma época em que a simples menção do gulag Solovki era tabu. A KGB tomou conhecimento do projeto dele e tentou fazer com que fosse demitido.
Depois do colapso da União Soviética e da abertura de alguns arquivos, Brodski criou uma exposição e escreveu um livro, "Solovski", um compêndio de 527 páginas de documentos, fotos e depoimentos de ex-prisioneiros.
Ex-prisioneiros lhe disseram que os presos trabalhavam 12 horas por dia em tarefas árduas, como derrubar árvores, com frequência com pouco mais que as próprias mãos nuas. Eles costumavam vestir as roupas com as quais foram presos, que logo se transformavam em trapos. No inverno, dormiam empilhados para resistir ao frio gélido; no verão, os mosquitos eram tão agressivos que uma punição excruciante era simplesmente ser atado nu ao ar livre. Uma igreja remota no Monte Sekirnaya se transformou em uma "câmara especial de punição"; poucos enviados para lá retornaram.
"A ideia deste campo era mudar alguém de indivíduo a uma parte de uma multidão anônima", disse Brodski. Isso custou a muitos deles suas vidas, apesar do número total de mortos nunca ter sido publicamente revelado.
Os monges –-cerca de 100 atualmente-– começaram a restaurar o mosteiro há uma década. Porfiri, o abade, disse que muita reconstrução era necessária porque muitos dos prédios estavam em condições terríveis. O governo planeja gastar ali cerca de US$ 1,7 milhão (R$ 6,1 milhões) por ano por cinco anos.
Brodski disse que os monges reduziram sua exposição no mosteiro e posteriormente a removeram. Em 2011, o Ministério da Cultura substituiu a exposição por um pequeno museu no antigo quartel no vilarejo, tendo o abade como diretor. Brodski diz que o museu atenua a vida no gulag ao enfatizar aspectos mais gentis, como o teatro da prisão. A única exposição dentro do mosteiro agora se concentra na repressão ao clero.
O abade disse que era apropriado abrigar o museu do gulag em um prédio construído para o campo, e alguns visitantes, como Vitaly Korzhikhin, 24 anos, concordam. "As pessoas vêm ao mosteiro por razões diferentes –-como buscar salvação ou apoio", disse Korzhikhin, um engenheiro de telefonia móvel que frequenta a igreja. "Para elas, seria desagradável ver essa exposição no interior dos muros."
O arcipreste Vsevolod Chaplin, uma importante autoridade da igreja, disse que nos últimos anos da União Soviética, o mosteiro foi atormentado por "turismo bárbaro", incluindo camping, música barulhenta e embriaguez pública.
"É um lugar de oração; é um lugar de lamentação. É um lugar onde muitas pessoas inocentes, que antes eram representantes notáveis da 'intelligentsia', morreram", disse Chaplin. "É um memorial para muitas pessoas, fiéis ou não. E deve permanecer como um memorial."
Tradutor: George El Khouri Andolfato
A Rússia vem discutindo como lembrar das vítimas dos gulags, um processo emocionalmente carregado que culminou neste mês, quando o primeiro-ministro Dmitri Medvedev reconheceu os milhões que sofreram sob a repressão política soviética.
Os ativistas se sentiram encorajados pela diretriz que ele assinou, mas expressaram várias reservas. Primeiro, ela essencialmente não é vinculante, sem peso legal ou orçamentário. Segundo, foi Medvedev quem a assinou, não o homem que importa mais na Rússia, o presidente Vladimir Putin.
Finalmente, ela contradiz o que de fato vem acontecendo em lugares como Solovetski: a minimização do legado da opressão. Pela primeira vez desde a queda do comunismo, nem a igreja e nem o governo enviaram um representante para uma cerimônia anual em 7 de agosto, em honra às vítimas do campo.
Igualmente, o Perm-36, um ex-gulag que foi preservado como um museu da repressão política, foi transformado neste ano em um focado na história do trabalho no campo. Uma exposição recente exaltava as realizações na produção de madeira do Perm-36.
Essa diluição tem se tornado mais predominante, especialmente em locais agora controlados pela Igreja Ortodoxa Russa. Os críticos dizem que a igreja contorna as questões de prestação de contas ao enfatizar o papel eclesiástico desses locais.
Essa tendência produziu um intenso cabo-de-guerra em torno das ilhas remotas onde o mosteiro fica situado. As Ilhas Solovetski, também conhecidas como Solovki, ficam no Mar Branco, 160 quilômetros abaixo do Círculo Polar Ártico.
O debate coloca monges e peregrinos religiosos contra aqueles que acreditam que o local deveria ser consagrado aos inúmeros prisioneiros políticos que morreram ali. Os aldeões que temem ser expulsos pela igreja também foram atraídos para o debate, assim como as operadoras de turismo que promovem a beleza da área e chance de verem baleias-brancas e vida selvagem. A Unesco também está envolvida, alertando que a reconstrução extensiva pode ameaçar o status do mosteiro fortificado, fundado em 1436, como Patrimônio da Humanidade.
A igreja vê o mosteiro como um testamento importante do poder da fé, por ter sobrevivido por tanto tempo em um local remoto.
"Muitos templos sagrados nacionais foram criados em silêncio como do deserto, mas com o passar do tempo, cidades cresceram em torno deles", disse o abade do mosteiro, Archimandrite Porfiri, em uma resposta por e-mail a perguntas por escrito. "Em Solovki, é fácil encontrar solidão, tão importante para a alma."
Ele caracterizou o período do gulag, de 1923 a 1939, como um mero interlúdio na longa história do mosteiro. Entretanto, ele avulta para aqueles que desejam honrar suas vítimas.
Nos dias longos do verão ártico, é difícil imaginar as cenas distópicas descritas pelos sobreviventes do campo. A ilha principal, coberta por densas florestas de pinheiros e pontilhada por lagos, tem um ar bucólico, apesar de dilapidado. Vacas e cabras pastam livremente no lado externo dos muros do mosteiro, em uma aldeia com população de cerca de 1.000 habitantes.
As ilhas eram consideradas sagradas muito antes do mosteiro ser construído; culturas pré-cristãs deixaram complexos labirintos de pedra, construídos como portais para o pós-vida. As muralhas de granito do mosteiro, equipadas com torres, foram concluídas por volta de 1601, e suportaram um bombardeio naval britânico durante a Guerra da Crimeia.
Quando Brodski, 69, visitou as ilhas pela primeira vez em 1970, ainda restavam muitos traços do campo de trabalhos forçados há muito fechado. Um engenheiro e fotógrafo, Brodski passou a documentar tudo. Ele rastreou os sobreviventes do campo por toda a Rússia, em uma época em que a simples menção do gulag Solovki era tabu. A KGB tomou conhecimento do projeto dele e tentou fazer com que fosse demitido.
Depois do colapso da União Soviética e da abertura de alguns arquivos, Brodski criou uma exposição e escreveu um livro, "Solovski", um compêndio de 527 páginas de documentos, fotos e depoimentos de ex-prisioneiros.
Ex-prisioneiros lhe disseram que os presos trabalhavam 12 horas por dia em tarefas árduas, como derrubar árvores, com frequência com pouco mais que as próprias mãos nuas. Eles costumavam vestir as roupas com as quais foram presos, que logo se transformavam em trapos. No inverno, dormiam empilhados para resistir ao frio gélido; no verão, os mosquitos eram tão agressivos que uma punição excruciante era simplesmente ser atado nu ao ar livre. Uma igreja remota no Monte Sekirnaya se transformou em uma "câmara especial de punição"; poucos enviados para lá retornaram.
"A ideia deste campo era mudar alguém de indivíduo a uma parte de uma multidão anônima", disse Brodski. Isso custou a muitos deles suas vidas, apesar do número total de mortos nunca ter sido publicamente revelado.
Os monges –-cerca de 100 atualmente-– começaram a restaurar o mosteiro há uma década. Porfiri, o abade, disse que muita reconstrução era necessária porque muitos dos prédios estavam em condições terríveis. O governo planeja gastar ali cerca de US$ 1,7 milhão (R$ 6,1 milhões) por ano por cinco anos.
Brodski disse que os monges reduziram sua exposição no mosteiro e posteriormente a removeram. Em 2011, o Ministério da Cultura substituiu a exposição por um pequeno museu no antigo quartel no vilarejo, tendo o abade como diretor. Brodski diz que o museu atenua a vida no gulag ao enfatizar aspectos mais gentis, como o teatro da prisão. A única exposição dentro do mosteiro agora se concentra na repressão ao clero.
O abade disse que era apropriado abrigar o museu do gulag em um prédio construído para o campo, e alguns visitantes, como Vitaly Korzhikhin, 24 anos, concordam. "As pessoas vêm ao mosteiro por razões diferentes –-como buscar salvação ou apoio", disse Korzhikhin, um engenheiro de telefonia móvel que frequenta a igreja. "Para elas, seria desagradável ver essa exposição no interior dos muros."
O arcipreste Vsevolod Chaplin, uma importante autoridade da igreja, disse que nos últimos anos da União Soviética, o mosteiro foi atormentado por "turismo bárbaro", incluindo camping, música barulhenta e embriaguez pública.
"É um lugar de oração; é um lugar de lamentação. É um lugar onde muitas pessoas inocentes, que antes eram representantes notáveis da 'intelligentsia', morreram", disse Chaplin. "É um memorial para muitas pessoas, fiéis ou não. E deve permanecer como um memorial."
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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